Nuno Gama: a essência de saber que ser parte do problema é ser parte da solução

Entrevistei Nuno Gama a propósito dos 30 anos da marca e descobri não apenas uma marca, mas um criador e um consumidor consciente, cuidadoso e preocupado.

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As criações de Nuno Gama são, desde sempre, fortemente marcadas pela alma lusa Nuno Ferreira Santos
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Nuno Gama preparou um evento para apresentar a sua nova colecção num dos monumentos mais icónicos de Lisboa, o Castelo de São Jorge, e eu aproveitei a ocasião para conhecer melhor o criador que, nos últimos trinta anos, tem desenvolvido criações intemporais que reflectem a alma portuguesa.

A ideia do ser português também esteve em discussão, mas debruçamo-nos sobre a forma como a marca se funda na ideia de sustentabilidade e, contra o meu próprio preconceito, a sustentabilidade na moda nacional não é, afinal, uma ideia recente.

Da Máxima aos dias de hoje

Comecei a acompanhar a indústria da moda em Portugal muito cedo. Na altura, as revistas femininas faziam o papel da Internet e das redes sociais digitais. Eram a minha janela para o mundo, juntamente com aquilo que estava ao nosso alcance, no início dos anos de 1990: a rádio e a televisão.

Lembro-me da capa da primeira edição da revista Máxima e acompanhei todos os números de 1988 em diante, muito antes de me tornar adolescente. A Máxima transportava-me para um mundo de sonho e glamour, mostrando-me a ModaLisboa, as modelos e os designers.

A ModaLisboa, fundada em 1991 por Eduarda Abbondanza e José Manuel Gonçalves, assumiu-se como uma plataforma crucial para o design de moda, a sua promoção e internacionalização, preenchendo, durante anos, as páginas da Máxima com as imagens dos desfiles, entrevistas a criadores e a reportagem dos acontecimentos.

Da nossa Xana Nunes, que fez a capa no lançamento da Máxima, às modelos internacionais, havia espaço para modelos e designers, juntamente com temas de actualidade e de aprofundamento jornalístico. A moda tinha sempre um espaço de destaque, garantindo visibilidade e reconhecimento aos criadores portugueses, com entrevistas e perfis, reportagens e editoriais que, na altura, deram a conhecer o mundo da moda em Portugal.

Não me lembro, contudo, de ler sobre a sustentabilidade na moda. Assumi, portanto, tratar-se de uma preocupação recente, fruto da necessidade global em encontrar formas alternativas e amigas do ambiente para a produção na moda. Nuno Gama foi peremptório, assumindo que a sustentabilidade esteve sempre presente na moda em Portugal.

A moda é toda igual?

O início da renovação têxtil em Portugal começou nos anos de 1990, num processo de alteração de práticas poluentes, como o descarte de águas resultantes da tinturaria para os rios, e a tomada de consciência da causa efeito das opções de produção na moda, mas também das escolhas ao nível individual.

Nuno Gama, por exemplo, há muito que deixou de usar detergentes em casa, pelo impacto que estes têm no ecossistema marinho. Por isso, atribuir à indústria da moda, no geral, a responsabilidade pelo impacto negativo no ambiente é, na opinião de Nuno Gama, observar apenas uma parte da questão.

A produção em massa, o excesso de produção e consumo da fast fashion são, de facto, o maior problema — e não a moda de autor que o designer português tão bem representa. Da mesma forma, “a opção colectiva que tomámos, enquanto sociedade faz com que estamos a viver um disparate total”, afirma Nuno Gama. Queremos tudo, mas “esse tudo tem um custo”, assegura categoricamente. E continua dizendo que, “para um produtor, por exemplo, de algodão, o processo de negociação com vários compradores ou a dependência de vários intermediários é mais complexo do que a venda a sua produção total directamente a apenas um comprador”.

Acontece que, na maior parte dos casos, esse comprador estará, por exemplo, na China, onde hoje se produz a maior parte da fast fashion. A forma como decidimos viver, acrescenta, tem implicações a vários níveis. “Sabemos que andamos a comprar coisas (mais) baratas com consequências concretas, no âmbito social, ético, ambiental, mas continuamos a fazê-lo.” A pergunta é: porquê?

Compramos barato porque não podemos fazer melhor?

Sabemos que, apesar de alguma inconsciência e fervor consumista, há também quem não tenha recursos para fazer melhor, comprar mais caro e com preocupações éticas, sociais e sustentáveis. Contudo, também sabemos que muitos dos que podem optam por continuar a comprar numa lógica de mais: em quantidade, atrás as tendências e da variedade (que não é o mesmo que diversidade).

Na moda e restantes áreas, há uma certa tendência para responsabilizar o consumidor, desresponsabilizando as indústrias. De facto, o consumidor tem responsabilidade, contudo, a questão do consumismo também pode ser observada a partir das marcas que produzem mais e em piores condições. Estas como induzem, muitas vezes, o consumidor em erro, com práticas supostamente sustentáveis e opções aparentemente amigas do ambiente, e que são apenas greenwashing, ou seja, informação dúbia, irrelevante, por vezes fraudulenta, para levar o consumidor a identificar a marca ou o produto como sustentável, ou produzido de forma sustentável.

Na última década, a indústria da moda em Portugal desenvolveu práticas de sustentabilidade muito inovadoras. Muitos designers têm práticas éticas e sustentáveis, ao mesmo tempo que se exploram novas tecnologias e materiais inovadores.

A marca Nuno Gama segue exactamente este caminho, inverso ao das marcas de fast fashion, “não massificando, ou produzindo em grandes quantidades, mantendo a produção em Portugal e, sobretudo, procurando parceiros co-responsáveis e certificados, para minimizar a pegada ambiental”, afirmou nesta entrevista.

O criador admite que “a complexidade associada à produção de qualquer material torna quase impossível afirmar sustentabilidade a 100% na produção de moda, optando por garantir que, quer os seus métodos de trabalho e de produção, quer os dos seus parceiros são certificados e, por isso, provocando o menor impacto ambiental possível”. O criador afirma que “recebe inúmeras propostas de potenciais parceiros, mas mantém-se fiel à localização, produzindo em Portugal, mesmo que tal nem sempre seja a melhor escolha”.

Portugal é um portento em termos de qualidade têxtil e manufactura e, simultaneamente, “incapaz de valorizar esta indústria, unindo os seus agentes para que, juntos, possam ser mais fortes”, acrescentou. Faltam decisões políticas que permitam desenvolver uma estratégia para indústria da moda e que, desta forma à semelhança de outras áreas, possa crescer nacional e internacionalmente, o que nos leva ao início da questão, da razão pela qual as pessoas continuam a comprar barato porque não sabem, não querem saber ou não podem fazer melhor.

Paixão é a marca Nuno Gama

Nuno Gama tem uma voz que brilha e, apesar da visão pragmática, o seu discurso optimista e apaixonado por Portugal fez-me voltar às páginas da Máxima onde, provavelmente, contactei com a marca pela primeira vez.

As suas criações são, desde sempre, fortemente marcadas pela alma lusa e acredita que “a nossa essência enquanto portugueses, a forma como vivemos, a nossa gastronomia, o nosso clima, o nosso sorriso faz de nós um povo diferente. Quando nos centramos no que é a nossa essência e a transportamos para o nosso trabalho há uma forma diferente de ver, sentir e pensar que é o segredo que escapa a muitas pessoas”, assegurou.

Com clientela espalhada pelo mundo inteiro e características muito diferentes entre si, a marca Nuno Gama posiciona-se para um público que reconhece a qualidade e o carácter único de cada peça, muitas das quais com elementos tipicamente portugueses.

Essência, a colecção que apresentou no Castelo de São Jorge, combina os habituais códigos de alfaiataria com um toque de humor que Nuno Gama tão bem sabe introduzir nas suas criações, cruzando a sobriedade de modelos de corte clássico com apontamentos arrojados em padrões de forros, emblemas e detalhe nos cortes. Há, em todo o seu trabalho, essa essência do ser português que combina com a essência do mundo que não se limita ao que entendemos por Portugal.

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