Eles vivem “à margem” da sociedade, em busca da felicidade e liberdade máxima

São travelers e percorrem os EUA à boleia ou escondidos em comboios de carga em busca de si próprios. Durante dez anos, Michael Joseph retratou os "corajosos" membros de uma subcultura incompreendida. 

O fotolivro "Lost and Found", do fotógrafo Michael Joseph, será lançado brevemente pela editora Kehrer Verlag
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O fotolivro "Lost and Found", do fotógrafo Michael Joseph, será lançado brevemente pela editora Kehrer Verlag

Liberdade. Pura e absoluta. Os travelers, nómadas que Michael Joseph fotografou por todo o território dos Estados Unidos, têm em comum uma vontade insaciável de experienciar o mundo “nos seus próprios termos”, de escapar à previsibilidade e ao condicionamento dos padrões da sociedade.

“Os travelers abandonam as suas casas para viajarem pelo país à boleia ou em comboios de carga para poderem alcançar uma vida à margem da sociedade”, escreve na sinopse do projecto Lost and Found, que, em Novembro, se materializa em formato de fotolivro pela editora alemã Kehrer Verlag.

Ao longo de mais de dez anos, o fotógrafo norte-americano realizou centenas de retratos de membros dessa tribo urbana que encontra raízes nos EUA dos anos 1930. “Tudo começou quando conheci um jovem, em Las Vegas, que tinha uma tatuagem de uma âncora no rosto”, recorda, em entrevista ao P3. Esse homem era Knuckles, que veio a encontrar noutras paragens ao longo do desenvolvimento do projecto. “Na altura, a interacção [com Knuckles] não me marcou particularmente, mas o retrato que fiz tinha algo de memorável.”

“Comecei a perceber que esta subcultura tinha raízes na história norte-americana e comecei a vê-los como um grupo importante a ser documentado”, refere. “Senti extrema curiosidade no que significava viajar em comboios de carga e como seria viajar com eles e decidi tornar-me próximo deles – sem, no entanto, passar a integrar este grupo.”

Ao longo dos dez anos que dedicou ao projecto, Michael Joseph conheceu “os seus pensamentos mais íntimos e os seus sonhos”. “Muitos faleceram e tive de assistir a muitos funerais. Em alguns casos, tive contacto com os seus pais e familiares, e foi assim que me tornei parte das suas histórias, mas nunca foi minha intenção ser um dos intervenientes das suas histórias.”

Shameless, um dos retratados de Lost and Found, abandonou a sua casa aos 19 anos para se tornar traveler. Ao fotógrafo, o jovem nómada contou que essa “foi a coisa mais assustadora que algum dia fez”. “Sempre tinha pensado em fazê-lo, mas nunca tinha tido coragem”, confessa.

Juntamente com um amigo, passou a viajar em comboios de carga ou a apanhar boleias. Ao viajar por vários estados norte-americanos, diz ter aprendido a ser ele próprio ,"a cem por cento", sem a pressão do cumprimento das expectativas de terceiros. “Vivi toda a vida a evitar meter-me em problemas, nunca querendo desapontar ninguém. Queria apenas ser aceite e amado por todos. Na estrada, aprendi a ser o meu verdadeiro eu, a ser a pessoa que eu amava. Só assim me dei conta do que era realmente capaz de fazer, física e artisticamente.”

A história de Sherie, que figura num retrato na companhia do então namorado Alister, difere grandemente da de Shameless. Aos 14 anos, a família adoptiva não permitiu que regressasse a casa após ter ido conhecer o seu pai biológico. Sem um lar, Sherie passou a integrar esta tribo urbana.

“As pessoas pensam que todos fazemos isto por opção, mas não é assim. Alguns têm um lar para onde regressar, outros não. Eu não tenho.” No momento em que foi retratada por Michael Joseph, Sherie já tinha atravessado 25 dos 50 estados que compõem os EUA. O seu percurso não está desligado do consumo de drogas – Sherie conta que as pessoas mais importantes que conheceu ao longo da sua vida, em viagem, já morreram. “Pelo menos quatro dos namorados que já tive morreram de overdose”, conta ao fotógrafo.

“Acho que é normal que os adolescentes e os jovens adultos tenham as suas experiências com álcool ou drogas”, observa o fotógrafo nova-iorquino. “Isso acontece aos estudantes, por exemplo, quando entram na universidade e se vêem, pela primeira vez, longe da família. Quando os travelers começam as suas viagens são ‘inundados’ por uma série de novas experiências. Visitam cidades novas, conhecem pessoas diferentes, e as drogas ou o álcool podem estar associados a essas etapas. Acredito que isso seja reflexo da ‘nova liberdade’ que acabaram de alcançar.” Ajuda o facto de ser fácil obter drogas e álcool nas ruas e que isso acabe por se transformar numa armadilha, sublinha. “As drogas que são cortadas com o opióide fentanil podem provocar overdose muito rapidamente.”

O consumo de drogas, no entanto, é apenas um dos muitos desafios que os travelers enfrentam no caminho. “Alguns movimentam-se apanhando boleias, o que representa algum perigo. Outros viajam em comboios de carga, o que também pode ser perigoso.”

Para os mais inexperientes, essas viagens de comboio podem traduzir-se em quedas que dão origem a ferimentos graves, inclusive as perdas de mãos, braços, pernas. E dormir na rua também se traduz num estado de vulnerabilidade. Para as mulheres, ser traveler acarreta ainda maior risco, aponta o fotógrafo. “Há mais homens travelers do que mulheres. Elas são, por norma, muito corajosas, são duras.” O assédio ou abuso sexual não são experiências incomuns entre as que viajam à boleia, refere. “E quando engravidam, são forçadas a abandonar o estilo de vida.”

Existe, na sociedade norte-americana, uma série de preconceitos que dizem respeito a este grupo. “Quem não conhece esta subcultura crê que estes jovens são seres humanos terríveis que não frequentaram a escola, que são toxicodependentes e que não querem trabalhar”, observa. “Muitos turistas já me abordaram, enquanto estou a retratá-los, para me perguntarem porque é que estou a fotografar vagabundos na rua.”

Michael Joseph vê os travelers de um ponto de vista totalmente diferente, no entanto. “Muitos escrevem de forma bela e poética, têm pensamentos profundos e complexos. Muitos têm educação universitária, lêem muito e escrevem muito. Uma grande fatia não toca em drogas e outros só são travelers em intervalos das suas vidas laborais.”

A percepção geral, tendencialmente negativa, torna mais difíceis as suas vidas em trânsito. “Muitas pessoas olham-nos como se fossem lixo e esse é o aspecto mais perigoso. Quando os conhecemos, quando ouvimos as suas histórias, torna-se difícil percepcioná-los negativamente.” A própria polícia, refere o fotógrafo, não trata bem os travelers.

Não é fácil, em muitos casos, o retorno a um estilo de vida dito "normal". “Estar num só lugar faz com que sintam uma enorme ansiedade”, explica. Alguns têm de lidar com processos de desintoxicação e outros têm pequenos delitos inscritos no seu registo criminal, o que dificulta a sua reintegração. “Alguns têm tatuagens muito visíveis que os impedem de conseguirem alguns tipos de emprego. A reconexão com a família também pode ser um desafio. Mas cada traveler tem a sua história, o seu percurso, e cada processo de reintegração será diferente.”

Michael Joseph fez centenas de retratos ao longo de uma década, mas o livro revela apenas 96 imagens. “A selecção foi muito difícil, uma vez que estabeleci laços pessoais com muitos dos retratados. Alguns já morreram e senti uma obrigação de os incluir no livro, mas o espaço é limitado.”

Através de Lost and Found, o fotógrafo quer partilhar uma história profundamente humana. “Há lições que podemos retirar das suas histórias e experiências. Espero que o leitor não romantize ou vitimize esta subcultura, mas que a veja como algo que está algures entre esses dois extremos."

Associa a filosofia dos travelers à recusa do materialismo e à busca de riqueza interior e de felicidade plena. "Gostaria que as pessoas vissem os travelers como seres humanos que têm a coragem de viver de forma autêntica e honesta consigo próprios."

Shameless. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Shameless. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Casper e Knugget. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Casper e Knugget. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Blue Eyes. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Blue Eyes. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Billy Highsail. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Billy Highsail. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Alister e Sherie. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Alister e Sherie. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Brillo, The Clown. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Brillo, The Clown. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Eramis. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Eramis. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Jesse James. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Jesse James. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Knuckles. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Knuckles. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Lost Boy. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Lost Boy. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Otter Pig. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Otter Pig. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
PF Jon. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
PF Jon. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Smiles e Ophelia. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Smiles e Ophelia. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Angel e Rocky. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Angel e Rocky. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Rango. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Rango. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Raskull. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Raskull. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph
Sasha. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag.
Sasha. Retrato do fotolivro "Lost and Found", editado pela Kehrer Verlag. ©Michael Joseph