Ver devagar

Nessa manhã passada com as minhas netas, tentei contrariar a tendência predominante na vida moderna que vai no sentido de se afastar cada vez mais da vida contemplativa.

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Para Heidegger a perda da capacidade contemplativa afasta o ser humano do ser Nuno Ferreira Santos/Arquivo
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Fui com as minhas netas de 7 e 5 anos ver uma exposição, mas não sem antes preparar o olhar para a contemplação. Simplesmente sentámo-nos as três num degrau em frente ao rio e permanecemos a olhar para a água, para o céu e para os barcos à vela. Ainda me perguntaram se dava para irmos andar de barco. Não, naquele dia não dava. Dava apenas para olhar. Mas era uma forma de olhar especial: tratava-se de olhar devagar.

Perguntas como o que vamos fazer depois ou quanto tempo falta para a atividade que se segue ficaram sem resposta.” Vamos apenas viver o momento presente, combinado? A seguir, logo se vê”, tentei convencê-las. Não durou muito tempo o momento da contemplação, mas foi uma primeira tentativa, que permitiu abrandar o olhar, antes da entrada no museu.

Já dentro do museu, após uma primeira exclamação de espanto, regressou a pressa: o que há para ver depois? “Calma”, disse eu. “Se virmos tudo muito rapidamente, a visita à exposição acaba num instante e acabamos por não ver nada com atenção. E que tal se reparássemos nos pormenores?”, refreei-as.

Assim fizemos. Olhámos de cima, ao longe, e aproximámo-nos, para ver de perto. Observámos as cores e as formas, as texturas e os materiais, os tecidos e as linhas, os berloques e as pedrarias. E voltámos para dar uma segunda volta, antes de passarmos à sala seguinte, para vermos as obras restantes com atenção.

Após esta visita, fomos ao espaço museológico contíguo para ver a continuação da exposição. Gostaram muito de ver uma árvore enorme, imponente e cheia de cores. Chamadas à atenção pela vigilante para que não se aproximassem demasiado da obra, propuseram ver mais ao longe. Foi a mais nova que sugeriu: e que tal se nos sentássemos naquele banco, mais ao fundo, a ver a árvore? Sentámo-nos, observámos… e esperámos.

A nossa espera foi recompensada. O tempo que dedicámos à contemplação permitiu-nos descobrir que as luzes da árvore acendiam e apagavam, e que a árvore era ainda mais bonita quando as luzes acendiam. A mais velha perguntou se eu podia filmar as luzes a acenderem. “Posso, claro que sim”, acedi. E filmei, para podermos voltar a ver quando chegássemos a casa.

Quando saímos do museu, a mais nova propôs que contemplássemos o rio mais um bocadinho. Assim fizemos. Antes do regresso a casa, voltámos a sentar-nos num degrau e reparámos nas diferenças: o rio desta vez tinha mais barcos à vela, e algumas velas estavam direitas e outras inclinadas. Também vimos um cacilheiro e recordámos uma viagem que tínhamos feito para a outra banda.

Nessa manhã passada com as minhas netas, tentei contrariar a tendência predominante na vida moderna que vai no sentido de se afastar cada vez mais da vida contemplativa. Segundo o filósofo Martim Heidegger, este afastamento deve-se à aceleração generalizada do processo de vida, que priva a humanidade da capacidade contemplativa. Esta privação tem um duplo impacto: não só interfere com o pensamento, como também afasta o ser humano do ser.

De acordo com a filósofa Hanna Arendt, “o facto de a vida contemplativa ter sido marginalizada em detrimento da vida ativa prejudicou o pensamento. A inquietação hiperativa, a agitação e o desassossego atuais não casam bem com o pensamento que, em consequência da pressão temporal cada vez maior, tende a não fazer mais do que reproduzir o mesmo”. Como consequência, na visão de Heidegger, as coisas que só se abrem num demorar-se contemplativo permanecem fechadas para o ser humano.

Para este filósofo, a perda da capacidade contemplativa afasta o ser humano do ser: “Demorar-se, perdurar, perpetuar-se corresponde ao antigo sentido da palavra ser. Só o ser dá lugar ao demorar-se, porque está e permanece. O ser não se abre na atividade. A própria ação deve conter em si momentos de interrupção. A época da pressa e da aceleração é, por isso, uma época de esquecimento do ser”.

Hanna Arendt defende a importância de sabermos parar, afirmando que quem não é capaz de deter-se não tem acesso a algo de verdadeiramente diferente. Nesta linha, não é estando cada vez mais ativo que alguém se torna sensível às experiências. Para tal, é necessária uma certa passividade − palavra cujo sentido tem de ser reinterpretado −, já que a revitalização da vida contemplativa está longe de traduzir-se num abrir-se passivo a tudo o que advém e acontece.

Pelo contrário, a contemplação oferece resistência aos estímulos intrusivos, dirigindo-os soberanamente. Para o conseguir, torna-se necessária uma reaprendizagem da arte da contemplação, nomeadamente junto das crianças. Como preconizava Nietzsche, a vida contemplativa pressupõe uma pedagogia específica do ver: “Aprender a ver significa habituar o olho ao descanso, à paciência, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento”.

Na perspetiva destes pensadores, a aceleração e dispersão temporal só poderá ser interrompida através da revitalização da vida contemplativa, ou seja, no momento em que a vida ativa acolher de novo no seu interior a vida contemplativa. Segundo Nietzsche, “pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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