Postal de Oeiras: Vozes do fado
Eu sabia que o Carlinhos tocava guitarra, mas não o via a acompanhar fadistas. “Não o via”. Juízos fátuos, uma treta.
— Malta, quem é que quer ir aos fados a Azeitão? — disse o Carlos.
Duas ou três vozes disseram que sim. Eu nunca tinha ido aos fados e também anuí. Fomos quatro.
A viagem de Setúbal a Azeitão, vai quase para duas décadas, não demorou.
Assim que entrámos na casa de fados (tenho quase a certeza que se chamava Casa Pimenta, mas não confirmei com o Carlos para que ele não desconfiasse que eu ia escrever isto), o meu primeiro espanto: “Olha o Carlinhos”, exclamou um; “Olha o Carlinhos”, exclamou uma; “Olha o Carlinhos”, exclamou outra.
Sentámo-nos. Pão, chouriço, azeitonas, vinho e mais alguns petiscos dos quais não me lembro, mas que sabiam bem.
Ouvimos um fado. Depois outro. Antes do terceiro:
— Ó Carlinhos, acompanha-me aqui! — disse a fadista.
E o Carlinhos acompanhou.
O meu segundo espanto: eu sabia que o Carlinhos tocava guitarra, mas não o via a acompanhar fadistas. “Não o via”. Juízos fátuos, uma treta.
Cantado o fado, diz a fadista: — Ó Carlinhos, canta um fadinho!
O meu terceiro espanto: o Carlinhos cantou. E cantou com um vozeirão que eu não lhe conhecia, e sobretudo com um sentimento de gente grande, de gente vivida, de gente sofrida e amada. Ele não se limitava a cantar as palavras, sofria-as. E isso marcou-me.
Eu teria uns 28 anos, quatro a mais que o Carlos, e não conhecia aquela profundidade de sentimentos. Por momentos, dei por mim a refletir na minha superficialidade, mas logo que ele se sentou junto a nós, dirigi toda a minha atenção para os seus olhos vidrados. Aquilo era puro. Nessa altura, percebi que o fado era o seu amor e destino. E compreendi também o aperto dos seus abraços. (que desde então copiei, aqui o confesso)
Hoje, o Carlinhos (Carlos Leitão) é fadista profissional. Contando com a casa de fados em Azeitão, já o ouvi quatro vezes ao vivo. A última foi no sábado passado, no Auditório Municipal Eunice Muñoz, um concerto integrado no festival Vozes do Fado, organizado pela Câmara Municipal de Oeiras. Além do Carlos Leitão, participam Tânia Oleiro (21 de setembro), Miguel Xavier (6 de outubro), Teresinha Landeiro (21 de outubro), Lenita Gentil (27 de outubro) e Sérgio Onze (3 de novembro).
No concerto de sábado, o Carlos, que é sempre aquilo que é, um ser transparente, no fado, mas sobretudo na vida, entregou-nos generosamente as alegrias que viveu (e vive), o amor que nutre pelo Alentejo, pela família e pelos amigos que escolheu, as dores de que padeceu (e padece) e a revolta que, espero eu, nunca amargue um coração do tamanho do mundo. Arrepiei-me na altura. Arrepio-me agora. E, não, isso não se deve à nossa amizade. Perguntem àqueles que estavam presentes e que não têm uma relação pessoal com ele e verão o que pensam.
Depois, a todo o momento, o Carlos compartilha os louros da sua prestação, enaltecendo a importância dos que contribuíram para fazer dele o homem e o fadista em que se tornou e dos músicos que o acompanham: Luís Pontes (viola), Carlos Menezes (baixo), Henrique Leitão e Guilherme Banza (guitarra portuguesa). A quantos concertos assistiram em que o vocalista apresentou a sua “banda” duas vezes?
A dada altura, respondendo ao chamamento de Carlos, Paulo de Carvalho (a par de Carlos do Carmo, o melhor intérprete de sempre em língua portuguesa) juntou-se-lhe para cantar O biltre, tema gravado em dueto por ambos, em que Leitão, o letrista, “usa o humor para descrever a sabujice e o chico-espertismo que conseguem, demasiadas vezes, sobrepor-se ao mérito que se exigiria para levar certas pessoas até ao topo”. Conheço a sua integridade e a facilidade com que indigna com injustiças e artimanhas. O biltre é uma reflexão divertida sobre esses temas. Divertida, mas séria.
O concerto chegou ao fim e o protagonista foi aplaudido de pé antes de retornar para entoar mais dois temas. Durante as palavras finais de agradecimento, pediu que a plateia fosse iluminada. O que se seguiu foi uma belíssima homenagem a Rodrigo, figura maior do nosso fado e da nossa cultura, a quem Carlos agradeceu a presença e convidou para cantar um fado.
E foi ali, à beira do palco, com os guitarristas a tocarem sem amplificação, que Rodrigo, de 82 anos, após lamentar o enfraquecimento da voz devido à covid — e fê-lo com uma voz tão frágil que, juro, julguei impossível que cantasse um verso que fosse… —, encheu o peito de amor ao fado e do brio de mais de 50 anos de uma carreira de sucesso, e cantou o poema Minha mãe.
O epílogo perfeito. Respeito e admiração, valores frequentemente desvalorizados num mundo que muitas vezes olha apenas para a frente e avança a uma velocidade tão frenética que deixa à margem os mais velhos, os mais vulneráveis, aqueles que preferem a contemplação e a reflexão à impaciência da novidade a cada piscar de olhos, sublimados num auditório repleto de pessoas com os olhos marejados de emoção e ternura.
Quem assistiu, não vai esquecer. Obrigado, Rodrigo. Obrigado, Carlinhos.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990