Postal de Alvaiázere I: o chícharo
À medida que a música da filarmónica ia desvanecendo, crescia o tom de outra música, a do choro da minha filha de três anos e três meses, que tanto pulou e dançou enquanto a banda passou.
– Vimos na televisão portuguesa que ia acontecer o Festival do Chícharo e como não sabíamos o que era, viemos de propósito de Bordéus para conhecer –, explicou Avelino Santos, natural de Guimarães e emigrante em França desde 1966.
– Isso é que é curiosidade –, repliquei.
– Nós já tínhamos bilhete de avião para ir a Fátima com o padre português de Bordéus, nos dias 12 e 13, mas decidimos vir antes e de carro para provar o chícharo. Perdemos o dinheiro dos bilhetes, que também não era muito, e assim aproveitámos mais um bocadinho em Portugal. Ontem até andei a apanhar… Como se é que chama aquilo, Maria?
– Tortulhos –, esclareceu Maria Alice, a esposa de Avelino, emigrante em Bordéus desde 1970.
– Isso! Tortulhos! Há muitos lá numa terra perto de Miranda do Corvo, de onde é a minha esposa –, concluiu, mostrando as fotografias de caixas cheias de fungos.
– Isso é preciso cuidado –, alertei.
– Ah, mas eu conheço-os bem, e eles até parece que brotam da terra à minha passagem.
– Olhe que basta falhar um!... –, insisti.
Perdido nas gargalhadas, Avelino já não me respondeu. Rir do perigo não é para todos.
O Festival Gastronómico Alvaiázere Capital do Chícharo cumpriu a 19.ª edição nos dias 6, 7 e 8 de outubro. João Paulo Guerreiro, o presidente da câmara, acredita que terão estado 25 mil pessoas no festival, quatro vezes a população de Alvaiázere: “O número de visitantes tem vindo a aumentar todos os anos, graças à muita curiosidade que o chícharo desperta nas pessoas. Como é uma leguminosa desconhecida, as pessoas vêm a Alvaiázere para saber o que é e experimentar. E nós promovemos esse produto e vemo-lo como uma âncora para promover o vinho, o azeite, os queijos, os enchidos, os frutos secos, os chás, enfim, toda uma panóplia de produtos muito importantes desta região. E tentamos fazê-lo sempre com uma componente cultural muito forte”.
E o que é o chícharo? “O chícharo é uma leguminosa rica em proteína vegetal, que antigamente servia como base da alimentação para as famílias com menos posses que não tinham acesso à proteína animal. Felizmente as coisas mudaram e o chícharo começou a ser essencialmente utilizado para alimentação animal. Há cerca de 21 anos, dois conterrâneos propuseram realizar o Festival do Chícharo. E foi assim que nasceu. E, entretanto, denominámos Alvaiázere a Capital do Chícharo.”
Oito tasquinhas exploradas por associações locais propunham chícharo confecionado de diversas formas. Fora do recinto do festival, 16 restaurantes aderiram ao evento para propor as suas interpretações do chícharo. Optei pelas tasquinhas do recinto, a coberto de megatenda destinada à degustação, repleta ainda não era meio-dia. Temendo a falência dos melhores pratos, fiz um raide pelos oito balcões para conferir as propostas. Eis um apanhado geral das sugestões:
- Sopas: creme de legumes com chícharo, sopa porqueira com chícharo, aveludado de chícharo com bacon e tomilho e sopa à lavrador com chícharo;
- Entradas: moelas estufadas com chícharos, ensalsada de chícharo com bacalhau, salada de pota com chícharo e pica-pau com chícharo;
- Pratos principais: leitão com batata frita e salada de chícharo ou migas de chícharo e bacalhau enchicharado em crosta de broa com batata frita e salada;
- Sobremesas: flor de chícharo com gelado, tarte de chícharo, gelado de chícharo, pudim de chícharo e travesseiro de chícharo.
Escolhi aveludado de chícharo, bacalhau enchicharado em crosta de broa com batata frita e salada e arroz-doce de chícharo. Que barrigada! Com a temperatura acima de 30 graus, a digestão pediu sombra e recato. Encontrei ambos debaixo de um plátano, nas traseiras da igreja matriz de Alvaiázere.
Foi de lá que ouvi os primeiros acordes da Sociedade Filarmónica Alvaiazerense de Santa Cecília (centenário cumprido em 11 de outubro). Corri para ver de onde vinham. Estava convicto de que seria do muito bem conservado, e quase centenário, coreto do adro da igreja. Aí chegado, percebi que era em frente ao edifício da câmara municipal que tocavam, salvo erro, os 36 elementos da banda. Ato contínuo, vi-os alinharem-se e começarem a caminhar. À cabeça, maestro, porta-bandeira, presidente da câmara e vereadores. Do topo do coreto, imaginei como seria bonito trocar de lugar com a banda e observá-los a tocar do alto do coreto, como antigamente. Ai, imaginação, para onde me levas?
Acredito que todos os instrumentistas caberiam no coreto, mas tão apertados que não conseguiriam tocar. “Só tubas, são umas quatro”, pensei, alterando o olhar entre o espetáculo que fluía aos meus pés e o topo da serra de Alvaiázere, “o miradouro mais vasto de Portugal”, na narração de Miguel Torga. Entusiasmado com a música e com o cenário, aplaudi. O choque de uma mão contra a outra fez-me regressar à terra. Mas por pouco tempo. Logo levantei voo rumo à infância, gesticulando como um maestro enquanto via a banda escoar-se na esquina, fila após fila, em direção ao recinto do festival.
À medida que a música da filarmónica se ia desvanecendo, crescia o tom de outra música, a do choro da minha filha de três anos e três meses, que tanto pulou e dançou enquanto a banda passou.
– Eu quero a banda, eu quero a banda –, pediu.
– Já lá vamos –, respondi.
Lugares novos, experiências diferentes, alegria, viver com entusiasmo e paixão. Tanto nos ensinam as crianças. Estar, sentir, “afinal, a melhor maneira de viajar é sentir; sentir tudo de todas as maneiras; sentir tudo excessivamente”, diz-nos Álvaro de Campos em Afinal. E assim se constroem memórias. E eu acrescento: a vida é um grande festival e tudo é música e comida e bebida e, sobretudo, gente e amor. E assim se vive. (Em paz.)
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990