As praxes universitárias e os doutores do bullying

É legítimo querermos que a atual geração suba no elevador social e um curso superior, não sendo tudo, pode proporcionar algumas ferramentas para que essa caminhada seja mais tranquila.

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É importante que "a formação de um estudante universitário, desde o início, vá no sentido da promoção ou reforço do seu espírito crítico" Adriano Miranda/Arquivo
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Chegar ao ensino superior é um sonho para muitos. Depois de anos e anos de estudo, de muita dedicação, com momentos de grande ansiedade e stress, por vezes ao ponto de se deixar de lado a vida social, as saídas com os amigos, de se estar presente no almoço semanal de família ou até de um ou outro aniversário de alguém importante, priorizando quase sempre o estudo, as explicações… Entrar na universidade é um momento mágico, em que sentimos que aquilo que investimos, que tanto batalhámos e até do que abdicámos, valeu a pena, conseguimos!

Entrar para o ensino superior é um objetivo de muitos jovens, mas também das suas famílias, existindo sempre algum receio e indefinição nesse momento, é legítimo querermos que a atual geração suba mais no elevador social do que as anteriores e um curso superior, não sendo tudo, pode proporcionar algumas ferramentas para que essa caminhada seja mais tranquila e consigamos atingir esse patamar.

Há uns anos, uma aluna que acompanhei dizia-me que era comum acordar a meio da noite em pânico, a pensar que ao dormir sentia estar a perder tempo e que deveria estar a estudar, levantando-se de imediato para se agarrar aos livros. Passados uns meses, teve um esgotamento e quase hipotecou a sua entrada e percurso no ensino superior.

Este “trabalho a tempo inteiro” realizado por muitos alunos do secundário que colocam como único foco das suas vidas, a obtenção de uma ambicionada média que lhes permita aceder ao curso pretendido, cria-lhes um grau de ansiedade e stress tão significativo que pode, em alguns momentos, ser algo quase insuportável… Depois, num ápice, chegamos ao grande momento, quando no final do 12.º ano, após mais umas semanas de tensão e nervosismo com os exames nacionais, se candidatam e conseguem, na maioria dos casos, entrar no curso para o qual tanto lutaram, na universidade que mais desejavam. Ufa, o pior já está!

Mas na verdade, ultrapassado o medo de não entrar no ensino superior, surgem outros receios: O de arranjar uma residência, preferencialmente perto do estabelecimento de ensino e dentro dos valores possíveis à família é o mais urgente. De seguida, pode aparecer um medo ainda maior, o de ter de lidar com as praxes, que, na maioria das situações, não são mais do que uma versão de bullying encapotado, supostamente validado pela concordância dos que nelas participam. Trata-se de um início que, sejamos sinceros, facilmente se dispensaria.

Por bullying entende-se um conjunto de comportamentos agressivos entre pares, intencionais, repetidos e desenvolvidos numa relação de desequilíbrio de poder. Estes comportamentos podem ser verbais, físicos, relacionais, psicológicos, sexuais ou através dos dispositivos digitais e/ou online (cyberbullying).

No caso das praxes estas decorrem igualmente entre pares e são, demasiadas vezes, comportamentos agressivos, seja verbal, física e/ou psicologicamente, realizados repetidamente (mesmo que mais frequentes no início do ano académico, têm outros momentos e consequências ao longo dos restantes meses ou até anos) e nos quais existe sempre a intencionalidade de humilhar, fragilizar e fazer alguém sentir-se pouco confortável, não esquecendo que se trata de uma relação que se baseia num desequilíbrio de poder, onde alguém se impõe pelo seu estatuto social (no caso, ser-se veterano, supremo ou até com um cargo superior) ou, nalgumas situações, pela força física e/ou psicológica, ou seja, o argumento de quem defende as praxes referindo uma suposta intenção de ajudar na adaptação dos visados à vida académica, cai imediatamente por terra, não esquecendo que pode ter custos muito significativos na saúde mental de quem chega ao ensino superior.

Na prática, existe como que uma despersonalização, vermos rapazes e raparigas, muitos que antes revelavam uma forte personalidade, com ideias muito concretas, agora, muitas vezes longe de casa e fora da sua zona de conforto, todos alinhados, cabisbaixos (não esquecer que é expressamente proibido olhar diretamente um veterano ou supremo), apáticos, a receberem ordens para fazer coisas tão diversas como flexões (que podem ser realizadas enquanto se canta ou até grita ofensas a alguém), simularem atos sexuais, comer erva ou outras iguarias tentando ao máximo não vomitar, a serem batizados em pequenos chafarizes, fontes ou até poças no chão, a não poder contestar o que quer que seja, frequentemente num discurso arrogante, machista, por vezes até homofóbico, não é mais do que, na minha opinião, a antítese de tudo o que deveria ser o inicio de um percurso no ensino superior.

É especialmente importante que a formação de um estudante universitário, desde o início, vá no sentido da promoção ou reforço do seu espírito crítico, capacitá-lo para um exercício de cidadania plena, de defesa das suas opiniões, aprendendo a respeitar as dos outros. Estes alunos, hoje caloiros, tornar-se-ão rapidamente veteranos e supremos e poucos anos depois, serão os profissionais que estarão no mercado de trabalho, os professores, advogados, juízes, médicos, arquitetos, psicólogos ou até elementos de um futuro governo que irão decidir sobre as nossas vidas e precisam de ter formação a esse nível.

Termos um tipo de praxe que nada disto promove não faz sentido, não podemos querer “semear milho e colher trigo”, o que semearmos desde a entrada no ensino superior será o que teremos futuramente na sociedade. As praxes promovem o “seguidismo”, algo que costumo designar por “síndroma da matilha”, como acontece no bullying, faz-se algo porque um indivíduo nos obriga e nem pensamos nas consequências, vamos atrás de alguém sem que exista qualquer contestação, mesmo que seja algo que já deixou de fazer sentido na atualidade ou que ninguém sabe ao certo o porquê de se ter de fazer, faz-se apenas porque sim, está escrito em algum código de praxe ou é tradição de um dado curso ou universidade.

Quando algum caloiro não alinha nas “brincadeiras” fica “marcado” como mau elemento, visto pelos outros como alguém que não se quer integrar, que não tem o “bom desportivismo” de apreciar uma “boa praxe” que o tornará um igual aos outros, colando-se o rótulo de um estudante universitário que será sempre de segunda classe, que não foi suficientemente forte para aguentar tal “ritual de passagem”. Além disso, as “consequências” durante o seu percurso no ensino superior podem ser significativas, proibindo-os de trajar ou de participar em outros momentos e/ou cerimónias da vida académica.

Devemos também realçar que, por norma os mais antigos, veteranos e supremos mais ativos (como se designam em muitas instituições muitos dos mais “medalhados” na “arte de praxar”), são por vezes aqueles estudantes que conseguem ter mais “anos de casa” que alguns dos seus docentes, já que o número de matrículas podem chegar, como já conheci, às dez ou até mais, fazendo quase parte do “mobiliário” da instituição de ensino superior. Nestes casos o ponto alto da sua vida académica são as semanas iniciais de cada novo ano letivo, em que recebem atenção e “praxam” os novos alunos, sentindo-se poderosos e respeitados por todos. Terminado o período das praxes, regressam a sua insignificância estudantil nos restantes meses do ano, tendo um novo “ânimo” nas suas vidas durante a Semana Académica.

Alguma investigação refere que, quando se fala em bullying em idade escolar, as crianças e jovens agressores que não são alvo de algum tipo de intervenção especializada ou cujas ações contra os pares são minimizadas ou até “amnistiadas” pelos adultos, sejam em ambiente escolar, desportivo ou familiar, chegados à vida adulta, revelam mais problemas com a lei (antes dos 24 anos já tiveram algum comportamento grave com consequências a nível legal) (Olweus, 1993; 2011; Silva, 2010; Sourander et al, 2011), maiores taxas no que respeita aos consumos de álcool e drogas (De Haan, 1997) ou no que respeita aos divórcios, de mobilidade profissional (por incumprimento das directrizes que lhes são dadas pelas chefias ou por criarem conflitos com os colegas), piores salários (Ellery et al, 2010) de situações de maus tratos aos filhos e de envolvimento em situações de violência doméstica (Greenbaum et al, 1988). Ou seja, continuam a ter comportamentos que se caraterizam pela humilhação, a exclusão ou até a agressão.

Alguns estudos referem que alunos que apresentam um perfil de agressores ao longo do seu percurso educativo e não foram alvo de uma intervenção especializada, chegados ao ensino superior eram mais referenciados pelos pares como elementos mais ativos no que respeita às praxes, isto deve-se a uma interiorização de um perfil de atuação que se desenvolve sem grandes regras ou condicionalismos.

Muitas vezes estes comportamentos em idade escolar são como que um pré-estágio para outros como já vimos as praxes universitárias, a violência no namoro e/ou doméstica e o mobbing (muito semelhante ao bullying praticado por crianças e jovens, mas agora entre adultos e em contexto laboral). O que podemos dizer, sem sermos excessivamente exaustivos, é que se existem comportamentos agressivos em idade escolar que se não forem alvo de uma intervenção especializada, podem derivar em ações negativas, agressivas, graves nas relações adultas, sejam estas pessoais, familiares, amorosas, sociais ou profissionais.

É verdade que são cada vez mais as universidades e politécnicos, em vários cursos, que promovem praxes que se desenvolvem numa vertente mais humanista, pedagógica e até de promoção da empatia quando, por exemplo, um grupo de estudantes universitários se junta para fazer a limpeza de uma mata, recuperar ou pintar um espaço de determinado projeto social ou fazer uma recolha de alimentos ou de fundos para entregar a uma instituição da região ou enviar para um dos PALOP, mas estas situações continuam a ser a exceção e não a regra.

Como reflexão final deixo-vos a seguinte questão, não fará mais sentido promover em vez das tradicionais praxes, atividades realmente de integração, com a participação de todos os alunos, incluindo alguns ex-estudantes que podem falar da sua experiência, durante o curso e como este foi importante para a construção do seu projeto de vida, não esquecendo a importante participação dos docentes e elementos da direção do estabelecimento de ensino superior? Não será esta “praxe” muito mais empática, positiva e integradora para todos?


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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