Etceteras: um festival feminista para expandir o que pode ser o design
A primeira edição do evento decorre entre esta quinta-feira e sábado no Porto com palestras, workshops e uma feira do livro, entre outras actividades. O acesso é gratuito.
A primeira edição do Etceteras: festival feminista de edição e design surgiu a partir de premissas inerentes aos próprios movimentos feministas. Foi através de encontros, de redes de contactos e conhecimentos que se desmultiplicaram, que este evento cresceu e floresceu, para ocupar, entre quinta-feira e sábado, a Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto, na Praça de Gomes Teixeira.
Idealizado pelas designers, educadoras e investigadoras Isabel Duarte, Maya Ober e Nina Paim, com o apoio da activista-académica, produtora cultural e conservadora-restauradora Geanine Escobar, o programa do Etceteras – todo ele de acesso gratuito – é composto por palestras, conversas e workshops com convidadas nacionais e internacionais, performances, projecção de filmes, uma visita guiada feminista pela cidade, uma “ilha preta” de catering dedicada à culinária afro-brasileira e africana, e uma feira do livro.
Esta última é o “coração” do festival, considera a equipa. A decorrer durante os três dias, a feira conta com 26 livreiras e editoras independentes, sobretudo de Portugal e de Espanha, mas também de outras geografias, como México e Uruguai.
Entre as presentes, estão a editora Vai Vem e a Revista Leonorana, do Porto, dedicadas às intersecções entre design e arte; a Sapata Press, editora independente de vozes LGBTQIA+ na banda desenhada; Almanac Press, vinda da Finlândia e centrada em perspectivas trans; Microutopías, estúdio de publicação e de activismo gráfico uruguaio voltado para narrativas anti-hegemónicas do Sul Global; a Greta, livraria feminista de Lisboa; ou a Archive Books, de Berlim, que tem desconstruído o papel das linguagens, visualidades e arquivos na perpetuação de estruturas de conhecimento colonialistas.
A partir das escolhas para esta feira do livro é possível identificar as principais linhas orientadoras do Etceteras. Por um lado, uma preocupação em desvelar os arquivos e os legados intergeracionais da literacia feminista, seja em formato livro, fanzine, poster ou outros suportes editoriais menos legitimados, instrumentos que sempre foram essenciais para fazer circular mensagens, informações e afectos dentro de qualquer movimento ou rede feminista – como, de resto, se irá discutir nas palestras O Movimento ‘Women in Print’, com a historiadora Bec Wonders; Ferramentas Editoriais Feministas, com a investigadora e designer de comunicação Loraine Furter; ou Arquivismo como Memória Colectiva, com as investigadoras Paula Guerra e Joana Matias (esta mais debruçada sobre o contexto português, inclusive as publicações lésbicas do pós-25 de Abril).
Por outro, uma vontade em expandir a concepção do que é ou pode ser o design, convocando não só designers e tipógrafas para as conversas e os workshops, mas também activistas, historiadoras, jornalistas, educadoras, escritoras, poetas ou editoras de diferentes éticas e práticas.
“O design institucionalizado por escolas, academias, museus e publicações está historicamente atrelado à revolução industrial e, por isso, imbricado no capitalismo – é visto como um processo de beneficiamento que atrela valor a mercadorias e produtos”, introduz Nina Paim, da equipa do festival. “Nesse contexto, a figura do designer tem sido historicamente representada como ‘autónoma’. Esse design ainda é extremamente masculinizado, branco, europeu e cisgénero; um campo hegemónico no qual as perspectivas dissidentes raramente encontram espaço.”
Para a designer e curadora, co-fundadora da plataforma feminista internacional Futuress (responsável pela co-produção do Etceteras, em parceria com a Associação Calote Esférica), o design é, sobretudo, “um fazer, um materializar de coisas no mundo, um processo eminentemente político de criar mundos”. E “todo fazer”, acredita Nina Paim, é “fundamentalmente colectivo”.
“Depende de múltiplas alianças e requer sempre muitas mãos em conjunto e em movimento. No festival, optamos por propor workshops mão na massa que colocam em evidência a colectividade, como o que se debruça sobre a edição da Wikipedia, proposto pela jornalista Flavia Doria, ou o sobre artesanato pelo colectivo Macheia", aponta a designer. "A procura tem sido impressionante.”
O modo como o Etceteras pretende reorientar o nosso olhar sobre o design e a edição alinha-se não só com valores e práticas feministas que vão além do “feminismo predominante, ou do feminismo branco”, considera outras das curadoras, Maya Ober, mas também com uma “visão e uma praxis decolonial do pensamento”, acrescenta Geanine Escobar, a cargo da produção executiva.
"Imaginar e fazer mundos"
O figurino do festival decorre, de resto, do próprio currículo dos elementos da equipa, cujo trabalho tem implicado “desafiar o modo como o cânone no design é construído por homens brancos, cisgénero, europeus e norte-americanos”, diz Isabel Duarte, mentora do projecto Errata. Uma missão que é seguida, noutros moldes, pela Futuress, do qual Maya Ober é a actual co-directora, cargo que acumula com a gestão de uma outra plataforma, a Depatriarchise Design (“despatriarcalizar o design”, numa tradução livre).
“Em vez de pensar em ‘design feminista’, podemos considerar práticas feministas de design”, aponta Ober. “Nessa abordagem, o resultado – seja uma cadeira, um copo menstrual, uma experiência ou um jantar preparado –, é menos importante. O que realmente importa é o processo de design, quem está envolvido, como comunicamos, seleccionamos materiais e consideramos o nosso ambiente, projectamos de forma inclusiva e construímos conhecimento.”
Um conhecimento que tem de ir além de uma visão e de um sistema de hierarquização eurocêntrica. “Ao examinar o design sob uma perspectiva decolonial, podemos ver como qualquer produção criativa além do mundo do Norte e do Oeste foi classificada como artesanato, em vez de design”, refere a também antropóloga.
Como afirma Nina Paim, tudo isso está ligado “a práticas materiais e políticas de imaginar e fazer mundos”. Ou, como diz Geanine Escobar, pensar interseccionalmente “classe, raça, género, sexualidade, idade, território, tendo em vista a área do design, que invisibiliza muito essas questões que perpassam a vida quotidiana de muitas pessoas”.
“Durante o festival, teremos vários momentos para colocar em evidência as barreiras enfrentadas por posições não-hegemónicas, tanto no design quanto na edição. A poeta e investigadora Raquel Lima irá palestrar sobre as suas dificuldades em publicar enquanto mulher negra em Portugal, tanto no campo académico como no meio editorial expandido”, exemplifica Paim. “Sharmaine Lovegrove irá compartilhar a sua trajectória editorial, contando como passou de livreira aos 15 anos, a viver em situação de rua aos 17, a proprietária de uma livraria em Berlim uma década mais tarde, sendo hoje, aos 40 anos, a pessoa negra com mais experiência no sector editorial da Europa, como directora geral da Dialogue Books.”
Neste “amplificar de vozes e práticas” entram também o workshop de Parasto Backman, cujo objectivo é questionar as normas dominantes das tipografias latinas, trazendo para cima da mesa outros alfabetos, com o farsi; a conversa sobre comunidades físicas e digitais feministas, com a jornalista Zinthia Álvarez Palomino (Afrofeminas) e a activista Rebeca Gomes de Freitas (Colectivo Afreketê); ou a palestra sobre metodologias de tradução com Ellen Lima Wassu, escritora e investigadora indígena de origem Wassu Cocal, a residir em Braga, que escreve em tupi e português, e María Mur Dean, editora e co-fundadora da Consonni, de Bilbao, que publica em euskara (língua basca) e espanhol. Mas também a já mencionada “ilha preta” do catering, idealizada por Karina Ramos, historiadora e cozinheira afro-brasileira residente em Portugal. Além de “pratos pensados para evocar a ancestralidade da mulher do contexto afro-diaspórico”, nota Geanine Escobar, aqui encontrar-se-á utensílios e peças de design afro-brasileiro.
“É muito importante conciliar conhecimentos e pôr em prática aquilo que nós dizemos ser urgente: fazer circular financiamentos culturais entre pessoas queer, racializadas e migrantes, como a nossa equipa de produção. Estamos aí querendo mostrar as nossas ideias, que muitas vezes são desvalorizadas no contexto português”, observa a produtora cultural.
A equipa do Etceteras destaca ainda “a tentativa” de implementar políticas de acessibilidade no festival. Umas foram conseguidas, outras não. As palestras serão legendadas em português e em inglês (as conversas com moderadoras serão faladas em português ou “portunhol”) e há abertura para receber pedidos ou dúvidas de pessoas com mobilidade reduzida (a Casa Comum tem uma entrada com rampa móvel). Não houve orçamento para apostar em tradução simultânea, nem “permissão” da instituição para pôr as casas de banho sem género, bem como criar uma creche durante o evento, a fim de acolher as crianças de pais e mães que quisessem assistir a palestras ou participar em workshops.
O festival encerra no sábado à noite com uma performance da artista e investigadora Ece Canli, em torno da voz, da palavra falada e da música electrónica.