Parma, a cidade das tílias perfumadas
“Uma das viagens mais belas da minha vida, no final dos anos de 1990, decorreu sem máquina e sem fotos”, escreve a leitora Maria Goreti Catorze.
Desengane-se quem pensa que antes da era digital das fotografias desenfreadas não havia memórias ou viagens inesquecíveis. Asseguro-vos que sim, havia. Talvez mais intensas do que as de hoje, porque sabíamos que a única forma de lembrá-las no futuro era retê-las na memória e guardá-las no coração.
A minha geração era assim. Nenhum de nós tem fotografias da casa onde cresceu. A máquina fotográfica funcionava com um rolo de papel que era usado para tirar um número limitado de fotos (o meu tinha 12), a preto e branco no início (só depois veio a cor). Eram tiradas durante as férias passadas longe do sítio onde vivíamos (a distância é um conceito relativo, geralmente ia-se do interior para o litoral…). Procurávamos fazer uma selecção criteriosa antes de carregar no botão. Acontecia tirarmos uma fotografia e descobrirmos adiante um ângulo melhor. Um desperdício.
Quando regressávamos levávamos o rolo ao fotógrafo da vila, que nos devolvia as revelações semanas depois. Ainda estou a ver o meu pai a entrar em casa com um envelope na mão dizendo: "Estão aqui as fotografias." Sentia um baque no peito e abria o pacote à pressa. Ouvi, em Veneza, um turista francês que viajava de vaporetto dizer que as viagens têm três prazeres: um antes, um durante e um depois. Ver essas fotos era o depois.
Isto não se passou há muito tempo, tive a primeira máquina digital há pouco mais de dez anos. Onde quero chegar com esta introdução nostálgica? Ao facto de uma das viagens mais belas da minha vida, no final dos anos de 1990, ter decorrido sem máquina e sem fotos. Achei que por essa razão este artigo seria impossível de publicar. Mas encontrei uma fórmula de ilustrar este texto. Nos anos 90 do século XX as memórias visuais traziam-se em forma de bilhetes-postais com paisagens banalizadas de que fui grande coleccionadora. Não há uma palavra portuguesa que defina plenamente estas recordações. Outras línguas são exímias em chamar-lhes recuerdos ou souvenirs.
Só recentemente me comecei a desligar (não completamente...) destes objectos. Foi a fotografia dessas papeladas que me salvou da total ausência de imagens sobre a dita viagem a Itália. A cidade onde fiquei hospedada era Parma, que nunca me saiu da cabeça como um dos lugares mais fascinantes da Europa. Ou talvez daqueles onde me senti mais feliz. Era conhecida por várias razões: o leite Parmalat, o clube de futebol Parma, onde jogava o português Fernando Couto naquela temporada, o queijo parmesão, o presunto, o perfume violetas de Parma, o romance extraordinário de Stendhal A cartuxa de Parma, Verdi (que lá viveu), a catedral com o baptistério anexo de mármore rosa, o palácio de la Pilotta, onde viveu a duquesa de Parma (uma delas era portuguesa), as termas de Salsomaggiore (a escassos quilómetros de distância). A cúpula da catedral medieva de Parma tem frescos de Correggio (A Assunção da Virgem), sendo estes um marco importante na história da arte.
Para além disto tudo, Parma ficou-me gravada na memória porque era Junho, o mês dos dias grandes e noites quentes, mas sobretudo pelo inconfundível aroma dos milhares de tílias em flor. De tal forma que nunca mais senti esse aroma sem me lembrar dessa estadia. No curto espaço de tempo em que a flor da tília exala o seu perfume adocicado, seja em Lisboa ou na Beira-Baixa, recuo até 1997 e mergulho o pensamento nas ruas e parques da cidade de Reggio Emilia com as suas tílias altíssimas (não destruídas pelas podas, como fazem agora em Portugal...). Tudo isto me ficou gravado para sempre na memória, sem fotografias, só o cheiro a flores e uma enorme saudade desses tempos irrepetíveis.
Maria Goreti Catorze