Há “monstros” feitos de lixo a protestar contra o desperdício no Congo

Os artistas congoleses retratados por Colin Delfosse vestem trajes feitos de garrafas plástico, partes de automóveis, sucata electrónica, para protestarem contra o consumo desenfreado e o desperdício.

Artista Junior Lohaka Tshonga posa para o retrato no seu fato espacial, em Kinshasa, na República Democrática do Congo. O fato serve de metáfora para a protecção contra a poluição na cidade, uma forma de proteger o corpo contra materiais tóxicos ©Colin Delfosse
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Artista Junior Lohaka Tshonga posa para o retrato no seu fato espacial, em Kinshasa, na República Democrática do Congo. O fato serve de metáfora para a protecção contra a poluição na cidade, uma forma de proteger o corpo contra materiais tóxicos ©Colin Delfosse

Os "monstros" que se passeiam pelas ruas da capital da República Democrática do Congo (RDC) não assustam, mas agitam consciências. Envergando trajes elaborados com materiais reutilizados que antes não passavam de lixo, detritos, um colectivo de artistas congoleses desenvolve performances de rua com o objectivo de sensibilizar os cidadãos da RDC e do mundo para questões ambientais, políticas e sociais que marcam o quotidiano de um país marcado pela pobreza, pela poluição e pela sobreexploração (por terceiros) dos seus recursos naturais. 

O projecto Fulu Act, do fotógrafo belga Colin Delfosse, consiste num conjunto de retratos desses artistas nas ruas da terceira maior cidade do continente africano. "Produzi estas imagens porque considerei que seriam uma forma interessante de abordar os desafios que a RDC enfrenta presentemente, nomeadamente a poluição e a globalização, sem ter de recorrer aos clichés que estão associados ao país", explicou ao P3, em entrevista. "Os trajes são visualmente muito ricos, o que torna a sua mensagem muito perceptível."

Delfosse desenvolve trabalho na RDC desde 2006 e regressa periodicamente ao país para documentar a realidade. "Com este projecto dou eco ao trabalho dos artistas e àquilo que pretendem dizer sobre o país e a forma como é gerido", continua. O país atravessa um período difícil. No final da década de 1950, Kinshasa era uma cidade colonial "simples", com uma população a rondar as 200 mil pessoas; após a sua independência da Bélgica, em 1960, sofreu uma explosão demográfica. Hoje, com cerca de 17 milhões de habitantes, a capital do Congo produz diariamente cerca de sete mil toneladas de lixo por dia. "Para além do centro urbano, a capital é como uma grande aldeia onde escasseiam infra-estruturas", lê-se na sinopse do projecto. "O Estado congolês é incapaz de dar resposta a desafios básicos, como construir estradas, redes de esgotos ou de electricidade."

"Fulu" significa lixo e "Act" remete para as intervenções dos artistas do colectivo Farata em espaço público, explica Delfosse. Nas imagens são retratados os artistas congoleses Junior Lohaka Tshonga, Florian Sinanduku, Jean Precy Numbi Samba, entre outros, que vestem trajes de latas, garrafas de plástico, partes de automóveis ou telemóveis, de embalagens de medicamentos, seringas, carvão e borracha. Cada um pretende abordar um problema específico. Florian, por exemplo, contou ao fotógrafo que "em Kinshasa, e no país inteiro, encontrar medicamentos ainda é um problema". "Nunca sabes de onde vêm e do que são feitos. Podes encontrá-los em todo o lado, mas a maioria provém da China e chegou cá sem qualquer controlo." 

Dá-se ainda um outro fenómeno que Colin Delfosse optou por realçar aquando da inauguração da exposição do seu projecto, no Museu D. Diogo de Sousa, em Braga, ao abrigo do festival Encontros da Imagem, a 16 de Setembro. Há toneladas de produtos descartados por cidadãos europeus que encontram uma segunda ou terceira vida no Congo e noutros países africanos. "Os carros e os telemóveis são um exemplo desse tipo de produto que chega à RDC já em fim de vida", explica. Os que não são reutilizados ficam lá concentrados, contribuindo para aglomeração de resíduos. "E a ironia é que muitos dos minerais que são utilizados na produção desses bens provêm do Congo, nomeadamente o cobre, o cobalto, o ouro. Assim, os congoleses não usufruem dos bens em primeira mão, ficando apenas com aquilo que é descartado por outros países."

As performances destes artistas congoleses são, assim, um protesto contra esta dinâmica que deixa o país em desvantagem. "Eles querem sublinhar que o povo congolês não deveria ser uma vítima da globalização, que não deveria ver subtraídos os recursos do seu país em prol do enriquecimento de líderes de países estrangeiros e de empresas internacionais sem colher qualquer benefício." O projecto estará em exibição na parte exterior do museu até ao dia 28 de Outubro.

Artista Florian Sinanduku posa no seu fato feito a partir de embalagens de medicamentos, em Selembao, Kinshasa, na RDC. "Em Kinshasa, e no país inteiro, encontrar medicamentos ainda é um problema. Nunca sabes de onde vêm e do que são feitos. Podes encontrá-los em todo o lado, mas a maioria provém da China e chegou cá sem qualquer controlo", conta Florian ao fotógrafo
Artista Florian Sinanduku posa no seu fato feito a partir de embalagens de medicamentos, em Selembao, Kinshasa, na RDC. "Em Kinshasa, e no país inteiro, encontrar medicamentos ainda é um problema. Nunca sabes de onde vêm e do que são feitos. Podes encontrá-los em todo o lado, mas a maioria provém da China e chegou cá sem qualquer controlo", conta Florian ao fotógrafo ©Colin Delfosse
Junior Lohaka Tshonga (1985) no seu fato "Bolole Nkemi" — que significa "Eu sou o Idiota". Junior é pintor e performer que estudou na Academia de Belas Artes de Kinshasa. Há vários anos que dedica o seu trabalho ao tema do plástico, reutilizando as garrafas desse material que encontra nos rios de Kinshasa
Junior Lohaka Tshonga (1985) no seu fato "Bolole Nkemi" — que significa "Eu sou o Idiota". Junior é pintor e performer que estudou na Academia de Belas Artes de Kinshasa. Há vários anos que dedica o seu trabalho ao tema do plástico, reutilizando as garrafas desse material que encontra nos rios de Kinshasa ©Colin Delfosse
Artista congolês Jean Precy Numbi Samba, também conhecido por Robot Kimbalambala, posa para o retrato no seu fato feito de partes de automóveis em Ngiri Ngiri, Kinshasa, em Dezembro de 2019. O mercado para carros nos subúrbios da capital contém peças de carros em segunda e terceira mão, provenientes da Europa, que são altamente poluentes
Artista congolês Jean Precy Numbi Samba, também conhecido por Robot Kimbalambala, posa para o retrato no seu fato feito de partes de automóveis em Ngiri Ngiri, Kinshasa, em Dezembro de 2019. O mercado para carros nos subúrbios da capital contém peças de carros em segunda e terceira mão, provenientes da Europa, que são altamente poluentes ©Colin Delfosse
Artista congolês David Baketimina posa no seu fato feito a partir de pedaços de carvão, no distrito de Ngiri Ngiri, em Kinshasa, RDC, em Dezembro de 2019
Artista congolês David Baketimina posa no seu fato feito a partir de pedaços de carvão, no distrito de Ngiri Ngiri, em Kinshasa, RDC, em Dezembro de 2019 ©Colin Delfosse
Artista congolês David Baketimina posa para o retrato no seu fato feito a partir de cabelo, numa rotunda na zona de Gambela, Kinshasa, em Dezembro de 2019.  "O cabelo era, tradicionalmente, utilizado como uma forma de comunicar e estava associado à beleza feminina. Com a generalização do uso de cabelo artificial, as mulheres perderam parte da sua identidade", conta David ao fotógrafo
Artista congolês David Baketimina posa para o retrato no seu fato feito a partir de cabelo, numa rotunda na zona de Gambela, Kinshasa, em Dezembro de 2019. "O cabelo era, tradicionalmente, utilizado como uma forma de comunicar e estava associado à beleza feminina. Com a generalização do uso de cabelo artificial, as mulheres perderam parte da sua identidade", conta David ao fotógrafo ©Colin Delfosse
Artista congolês Eddy Ekete posa para o retrato vestido com o seu fato feito a partir de latas, no distrito de Limete, em Kinshasa, RDC
Artista congolês Eddy Ekete posa para o retrato vestido com o seu fato feito a partir de latas, no distrito de Limete, em Kinshasa, RDC ©Colin Delfosse
Artista congolês Florian Sinanduku posa no seu fato feito de seringas, em Selembao, Kinshasa, RDC. A sua performance, intitulada "Saúde Pública", coloca questões relacionadas com o acesso à saúde, em Kinshasa. Florian Sinanduku, membro fundador do Colectivo Farata, actua em espaços públicos da capital da RDC
Artista congolês Florian Sinanduku posa no seu fato feito de seringas, em Selembao, Kinshasa, RDC. A sua performance, intitulada "Saúde Pública", coloca questões relacionadas com o acesso à saúde, em Kinshasa. Florian Sinanduku, membro fundador do Colectivo Farata, actua em espaços públicos da capital da RDC ©Colin Delfosse
Artista congolês Nada Thsibwabwa posa para o retrato no seu fato feito a partir de telemóveis, no distrito de Matonge, em Kinshasa (RDC)
Artista congolês Nada Thsibwabwa posa para o retrato no seu fato feito a partir de telemóveis, no distrito de Matonge, em Kinshasa (RDC) ©Colin Delfosse
Artista congolês Hemock Kilomboshi posa para o retrato no seu fato feito de peças de borracha, em Matonge, Kinshasa, RDC. Membro da plataforma Kinact, Kilomboshi actua nas ruas de Kinshasa com o objectivo de chamar a atenção para questões relacionadas com a globalização e exploração económica, por terceiros, da RDC
Artista congolês Hemock Kilomboshi posa para o retrato no seu fato feito de peças de borracha, em Matonge, Kinshasa, RDC. Membro da plataforma Kinact, Kilomboshi actua nas ruas de Kinshasa com o objectivo de chamar a atenção para questões relacionadas com a globalização e exploração económica, por terceiros, da RDC ©Colin Delfosse