Foi (mais) um verão de inferno para os animais

Ou somos educados para a empatia, para a humanidade num todo e relativa a todos os seres ao cimo da terra, ou continuaremos a socorrer-nos da capa da cultura, para justificar um atraso civilizacional.

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"Os toureiros não são más pessoas, nem quem assiste touradas é acéfalo" Paulo Pimenta/arquivo
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Um cão preso debaixo de uma pista de carrinhos de choque, assustado, com o ruído da música, assim percorrerá o seu verão, sujeito aos humanos que o arrastam como animal de estimação, sem que o estimem verdadeiramente. Uma taça seca ao lado por companhia e um cordel de meio metro atado ao pescoço. Foi apenas uma das muitas imagens que vi e procurei denunciar esta estação.

Em feiras e feirinhas, por este país fora, vêem-se ainda animais a servir de circo para quem passa, outros enjaulados em espaços exíguos. Galos e galinhas em claustrofóbicas gaiolas, cachorrinhos ao sol tórrido, encostados uns aos outros, a arfar. Em nenhum dos momentos que observei, pude vislumbrar a presença de autoridades por perto, mas talvez fosse necessário um olhar mais atento às condições em que alguns animais estão expostos pelas feiras e festas deste país.

O problema de Portugal continua a ser de índole educacional. Quando se diz, por exemplo, que as touradas subsistem porque fazem parte da cultura e tradições portuguesas, por que motivo foi então abolida diversas vezes? 1568 – Lutas com touros proibidas por D. Henrique, 1809 – Touradas proibidas por D. João VI, 1836 – Touradas proibidas por Passos Manuel, 1919 – Touradas proibidas pela primeira lei de proteção animal. Afinal nunca foi nem é uma ‘tradição’ consensual que una os portugueses, ou que os identifique como tal. A cultura de um povo, a sua essência e matriz plasmada naquilo que somos, no que fazemos, e sobretudo naquilo com que nos identificamos, enquanto portugueses, deveria reunir um maior consenso, no que a esta matéria diz respeito. Tenho sérias dúvidas de que se este assunto fosse a referendo, a maioria dos portugueses declarasse identificar-se com a continuidade das touradas em Portugal.

Neste verão, provavelmente dezenas de touros sufocaram no próprio sangue, agonizaram, para gáudio de quem na plateia se aperalta para ver um ser sacrificado. Há um comércio subjacente difícil de derrubar. E não, os toureiros não são más pessoas, nem quem assiste touradas é acéfalo. Não haverá argumento mais parvo para a discussão. É uma questão educacional. E, ou somos educados para a empatia, para a humanidade num todo e relativa a todos os seres ao cimo da terra, ou continuaremos a socorrer-nos da capa da cultura, para justificar um tremendo atraso civilizacional nesta matéria. Reparem como são poucos os políticos e figuras públicas a assumir claramente, por exemplo, se apoiam ou não as touradas em Portugal. O politicamente correto, o silêncio, ou o ‘a bem com Deus e com diabo’ vai perpetuando hábitos e costumes, que em nada nos dignificam.

Às vezes questiono, para que raio servirá a visibilidade pública, se não a utilizarmos em benefício de algo positivo, algo humano? Parecem faltar no presente, influencers dignos dessa designação.

Recentemente, cerca de 200 pessoas marcharam em Lisboa pela defesa dos direitos dos animais, insistindo na necessidade de cumprimento da lei quanto à punição de quem os maltrata, sendo que o Código Penal Português estabelece uma punição com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias para "quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia".

Apesar de toda a legislação existente e controlo subjacente, continua a ser habitual ver um animal perdido, à fome, na rua, ao Deus dará, abandonado. Todos os anos, em Portugal, há registo de uma média de mais de 40 mil animais de companhia, abandonados. Portugal continua a ser um país onde o verão é um inferno para os animais de companhia e para os outros.

Ainda não surgiu um Governo, que de uma vez por todas e com coragem estabeleça o bem-estar animal como prioridade. E a União Europeia? Que palavra tem a dizer sobre as touradas? A interpretação dúbia nesta matéria continua a ser prejudicial. Com 335 votos a favor, 296 contra e 60 abstenções, o Parlamento Europeu rejeitou em 2020 a possibilidade da Política Agrícola Comum financiar “cabeças de gado cujo destino final seja a venda para atividades relacionadas com a tauromaquia”, mas esta continua, segundo algumas reportagens vindas a público, a ser apoiada financeiramente através de subsídios a longo prazo, ou seja, alegadamente, as touradas mantêm-se na Europa, devido a fundos de milhões de euros destinados a quintas, financiados pela política da agricultura comum (PAC) da União Europeia.

São os Pôncio Pilatos dos tempos atuais, a lembrar os tempos em que as arenas eram espetáculo de sangue e horror também para os humanos. Evolução precisa-se.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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