Samuel ouviu gritar Samuel, mas não ligou. Não lhe deram nome à nascença, dava pelo nome que lhe davam quem o encontrava e era a primeira vez que o chamavam Samuel. Teve nomes bonitos quando aparecia de ver a Deus com as roupas que lhe vestiam nas Misericórdias onde ia sendo acolhido quando andava, como sempre, ao deus-dará; teve mais nomes feios quando andava de maltrapilho, o que também acontecia a maioria das vezes. Encolhia os ombros quando lhe perguntavam o nome. Ficas António, pronto. Ficas Zeferino, pronto. Foi dando por todos os nomes. O único nome com o qual sempre se identificou era o de Pulgas, o cão que o viu nascer e ainda hoje o acompanha pelo cheiro independentemente da sua identidade. Quando uma senhora que se cruzou com ele disse ao andar “esse cão está cheio de pulgas”, Samuel virou a cara, olhou-a e disse “desculpe, minha senhora, falou comigo?”
— Samuel!!!
Samuel não ligou. Dava pelo nome de Josué.
— Samuel, responde por favor, não vês que estou a morrer!.
Quando lhe mudavam o nome, Samuel precisava de um certo tempo para se habituar.
— Já vou, já vou, espera só um bocadinho, respondeu mais ligeiramente irritado do que distraído.
— Quero ir numa pira, Samuel, não te esqueças!
— Sim, sim, eu sei, não te preocupes. Tenho estado a trabalhar nisso.
Samuel não sabia que Augusta queria ser incinerada numa pira mas fez de conta. Não se apercebeu de ter entrado nele subitamente um assombro. Afastou-se mais atordoado do que normalmente era o seu estado de vida. Foi até ao precipício sobre o mar, viu as costas das gaivotas e dos corvos marinhos, chupou uma salicórnia, sentou-se a pensar no que tinha ouvido. Sobressaltou-se logo de seguida com um pressentimento. Descalçou um sapato, sacudiu a pedrinha que o estava a incomodar e correu de volta, esbaforido por carregar às costas um peso na consciência.
Pegou nela e levou-a em braços tendo todo o cuidado em não tropeçar. Não lhe pesou o peso daquela magreza extrema, quase translúcida, flor corpórea de cristal esboroado pelo uso de muitas vidas. Estilhaços anunciados. Luvas de seda branca para não deixar impressões digitais num ser imaculado de boas intenções e maculado de maus actos.
Tinha-a despido facilmente, bastou tirar-lhe o vestidinho coçado de algodão rosa, quase branco. Despiu-a para a lavar e prepará-la para a pira. Um corpo emaranhado de rugas pontuadas por sinais da senilidade da pele, o peito seco, estéril, amorosamente gasto. Uma frase e um desenho, tatuagens gastas pela idade. Esticou a pele para perceber o que estava escrito. A minha alma está aqui, conseguiu ler por baixo do que restava do seio esquerdo. A legenda daquilo que teve dificuldade em identificar como sendo um galo de Barcelos descolorido. A crista, tombada e desbotada, enrolada numa prega. As asas absorvidas pela pele ao longo dos anos entranharam-se e pereceram. Acabaram-se os voos e os sonhos. Fechou-lhe os olhos para manter o corpo mortalmente adormecido e não defunto. Pegou numa esponja e lavou-a com o pudor de um bisneto que não sabia que era a sua bisavó. Sem nojo ou constrangimento. Era um procedimento que tinha de fazer sem que ninguém lhe tivesse dito. Uma purificação.
— Augusta, Augusta, acorda, acorda, não morras já!
— Desculpa Samuel, desculpa, pus-me a pensar na vida e adormeci.
— Já sabes, quero ir numa pira, não te esqueças!
— Sim, sim, eu sei, não me esqueço, está descansada, não te preocupes.
— Augusta, Augusta, acorda, acorda, não morras já!
— Desculpa, desculpa, estava a sonhar.
Samuel demorou uma semana a construir a pira, o tempo de apanhar e cortar lenha de sobreiro, azinheira, faia-das-ilhas, sorneira e pinheiro-bravo que ia encontrando mais para o interior. A pira tinha metro e meio de comprimento, um metro de largura e outro de altura, não contando com o travesseiro, um tronco maior que tinha encontrado nem de propósito. Dispôs os troncos de forma cruzada para facilitar o arejamento. Entre eles ia pondo raminhos secos de piornos, juncos e estevas que serviriam de acendalhas. Encurtava o tempo de passagem, pensou. Dispôs a pira na posição este-oeste, na direção do mar e do sol poente, para que Augusta pudesse ver, se passassem, a baleia-azul no final dos seus 85 anos de vida, o albatroz voando com a dificuldade dos seus 50 anos. Ou a nau com vela latina que Augusta lhe contou ter visto levando a bordo os seus noivos.
— Augusta, acorda, acorda, não morras já!
— Desculpa, desculpa. Faz-me um canteiro.
A questão das flores tinha sido um grande problema. Augusta pedira-lhe, como última vontade, que o seu último olhar recaísse sobre as flores silvestres da Costa Vicentina. O único desejo que lhe restava neste mundo era morrer na contemplação dessa extraordinária beleza.
— Tem cuidado com as flores dos macaquinhos, as campainhas e as bocas-de-lobo. São muito frágeis.
Samuel improvisou o canteiro com dezenas de covinhas para onde ia transplantando as flores que encontrava nas suas voltas à procura de lenha. Seguiu meticulosamente as suas instruções, mas teve alguma dificuldade em desenhar a Cruz de Cristo. Augusta queria um canteiro com a forma da Cruz de Cristo. Queria navegar, levada por uma onda, um vento, um pensamento. Samuel acabou o canteiro a tempo.
A simetria da cruz exigia uma simetria cromática. Teve de calcorrear meio mundo das redondezas à procura das flores que dessem à cruz plantada o branco e o debruado a vermelho. Augusta, quando viu o canteiro, pela primeira e última vez, deu-lhe um beijo. O seu primeiro e único. Nunca ninguém tinha beijado Samuel e foi por isso que deixou cair uma lágrima agridoce, a sua primeira lágrima. Não tinha conhecido outras e surpreendeu-se.
— Augusta, acorda, acorda, não morras já.
— Desculpa, desculpa, adormeci. Obrigado, obrigado. É tão bonito!
— A maior parte do branco que vês é o das cenouras selvagens. Serviram para encher, estás a ver? Mas também há alquitiras-do-algarve, jacintos, alhos-lírios e armérias. Vês as peónias? E as bocas-de-lobo? Consegui fazer o debruado a vermelho com elas. As papoilas é que já murcharam.
— Augusta, acorda, acorda, não morras já!
— Sim, sim, diz, desculpa, o que estavas a dizer?
— Consegues ver aquela bola amarela?
— Sim
— E aquela mancha azul?
— Sim, sim. O que são?
— Fiz um sol com tojo, giestas e estevas, não sei se consegues ver. A mancha azul é o mar. Fiz o mar com campainhas, alhos-lírios e ervas-abelha. Mas reservei a espuma das ondas para ti. Consegues ver as flores dos macaquinhos?
— Tem cuidado com as flores-dos-macaquinhos, as campainhas e as bocas-de-lobo. São muito frágeis.
— Já viste que bonito está o canteiro? A Cruz de Cristo no horizonte de um mar de flores-de-macaquinhos e um sol de giestas? Era um canteiro assim que tu querias, não era Augusta?
— Augusta, acorda, acorda, não morras já. Tens muito futuro à tua frente!
— Desculpa, desculpa, estava a divagar. O futuro já me chegou.
— Não, Augusta, o futuro nunca chega. O futuro é onde somos todos felizes.
— Quanto tempo tenho?
— Não sei, Augusta, não sei definir o tempo. Podes ter um segundo ou uma eternidade, não sei fazer a distinção.
O Sol pôs-se num eclipse antes do pôr-de-sol. No duplo entardecer surgiram no céu as asperitas, mortalha sinuosa estendida sobre vinte e duas almas criadoras pertença de um cadáver precioso e único. Ao contemplar as nuvens raramente vistas, Samuel sentiu um medo celestial e térreo. Ficou quedo e mudo. Viu-se debaixo de água com óculos de mergulho a olhar para a superfície agitada do mar. Mas a ondulação era do ar e não do mar. Ondas de ar com espumas gradientes do preto ao branco. A ausência e a totalidade da cor. Gotículas desalmadas de cinza-óssea, captadas na base da nuvem mãe, uma mammatus, que desceu até onde não devia e entrou em convulsão com o ar quente emanado da pira. Tempestade seca, dois pôr-do-sol consecutivos no mesmo dia a coincidirem na hora da morte. Rolos de nuvens rodando sobre si próprios, uns atrás dos outros, uns por cima dos outros. Um turbilhão silencioso. O céu ameaçador. O mar a mudar de cor, a terra inquieta. O espanto do preto e do branco, dos azuis, amarelos, vermelhos, verdes e cinzentos que o ar e o mar lhe faziam chegar. O destempero daltónico dos elementos da vida numa festança fúnebre.
Em pleno baile celestial e marinho, a maçã-de-adão de Augusta executou o derradeiro movimento de deglutição em seco depois de ter dito já sei por que os matei.
Foi-se o tempo.
Samuel, estranhamente enlevado, deitou-se no restolho amarelento das ervas daninhas de braços atrás da cabeça. Descansou à espera do regresso do tempo reduzido a um instante numa deriva universal.