Oszka
Tomasz e Dorota nunca saberão o que aconteceu a Oszka, nunca irão conhecer os cambiantes da maldade humana que confluíram para mutilar assim a cadela.
Entrámos em casa e a cadela veio ao nosso encontro. Tomasz já me falara dela. Chamava-se Oszka. Tomasz e Dorota tinham-na adoptado num refúgio para animais abandonados. O apartamento era muito pequeno, numa rua central de Lodz, junto à grande estação de comboios. Uma só divisão ampla, dez metros por seis, talvez nem tanto, com uma kitchenette na parede mais afastada da porta, e a mesa de refeições, de tamanho modesto, debaixo da mezzanine assente sobre pilares metálicos. Lá no alto, entrevi a cama de casal. Ao canto, a casa de banho, sem janela. Era uma casa em que tudo estava ao alcance da vista, tudo estava ao alcance da voz. No liceu, um professor disse-nos que um filósofo da Grécia Antiga, cujo nome não fixei, postulara que uma cidade não devia crescer além do ponto em que um clamor, soando na praça central, deixasse de ser ouvido nos arrabaldes. Nas minhas leituras, nunca me cruzei com esta máxima, e continuo sem saber de que filósofo se tratava. Terei lido os livros errados? Dorota estava ausente, no trabalho. A mesa de refeições era a única mesa que havia naquele apartamento. Não tenho jeito para calcular a olho nu comprimentos e larguras.
Oszka era uma husky-siberiana, uma cadela-esquimó. Tinha a cauda reduzida a um coto disforme, cortada pela metade. Também lhe tinham cortado uma orelha, cujo bordo esfrangalhado cicatrizara numa linha irregular. No refúgio, ninguém soubera contar a Tomasz e a Dorota a história da cadela. Fora encontrada assim, mutilada e serena.
O prédio datava de antes da guerra, fora construído por judeus, uma família riquíssima de proprietários fabris. Não fixei o nome da família, quando Tomasz mo disse. Escapou-me, assim como me escapou o nome do tal filósofo grego que achava que a nossa felicidade colectiva dependia de estarmos atentos aos queixumes, às exclamações de júbilo e aos gritos de alerta dos nossos semelhantes. Os proprietários judeus moravam no primeiro andar, arrendavam o resto do imóvel. Os avós de Dorota tinham trabalhado como operários numa fábrica dessa família judaica, numa povoação próxima de Lodz, uma terra cujo nome era formado por duas palavras, a primeira das quais era Wola e a segunda das quais era impronunciável. Quando compraram o apartamento, Tomasz e Dorota não sabiam que aquele prédio pertencera aos antigos patrões dos avós dela. Só mais tarde veio à tona a estranha coincidência.
Chamei Oszka, ela aproximou-se, de olhos baixos, embora eu lhe tivesse falado em português. Há uma entoação universal do carinho a que todos sabemos recorrer, quer sejamos sinceros quer não. Fiz-lhe festas na cabeça, notei que tinha uma grande verruga negra a assomar do pêlo, do tamanho de uma amora. Tomasz disse-me que não lha podiam extrair, porque Oszka já era velha e se arriscava a sofrer uma paragem cardíaca por causa da anestesia. E acrescentou que Oszka sofrera muito, sem entender porquê. Não a queriam submeter a novos tormentos, que seriam para ela um enigma tão doloroso como os passados. Perguntou-me se queria limonada, aceitei. Assim que ele tirou da gaveta a faca para cortar os limões, Oszka foi sentar-se em silêncio diante da porta da varanda. Tomasz apressou-se a abrir-lha, Oszka saiu e deitou-se atrás da balaustrada de pedra trabalhada. “Ela não gosta do barulho quando estamos a cozinhar, principalmente das facas. Prefere ir lá para fora.” Na rua, passou um eléctrico. Oszka apoiou o focinho nas patas.
Os membros da família de judeus, os proprietários do prédio e das fábricas, foram mortos no Holocausto ou passaram a guerra escondidos, para sobreviver. As autoridades da nova Polónia nacionalizaram o prédio depois da guerra, e cada andar foi repartido em minúsculos apartamentos, com uma casa de banho comum em cada piso. Para que muita gente pudesse saborear uma ínfima parcela do luxo. Tão ínfima que já não se podia chamar luxo. Tomasz e Dorota compraram umas destas parcelas, remodelaram-na por completo. Um dos ocupantes anteriores mandara construir uma casa de banho, e o apartamento, já de si pequeno, estava repartido em minúsculas divisões. Eles preferiram fazer tábua rasa do passado, começar tudo de novo. Da mansão da família judaica, em Wola, os avós de Dorota levaram, durante a guerra, uma pequena mesa de carvalho de excelente qualidade. Todos os habitantes da povoação foram lá servir-se. Os avós de Dorota queriam comprar a mesa, teriam preferido pagar o preço justo por aquela peça de mobília, mas não era possível fazer negócio com os ausentes, com os condenados à morte, com os acossados. Pousei o copo de limonada no tampo da mesa de refeições, a mesa judaica que Tomasz e Dorota herdaram dos avós dela. Um dos sobreviventes da família de judeus, um advogado e professor universitário, regressou a Wola depois da guerra, mas as autoridades expulsaram-no, por ser um representante da classe capitalista.
Apercebendo-me do silêncio de Oszka, perguntei a Tomasz se ela não costumava ladrar. Ele tirou de um armário um pacote de biscoitos especiais, chamou-a. A faca já não estava à vista, Tomasz já a lavara e guardara na gaveta. Nem tudo, afinal, estava ao alcance dos olhos naquele apartamento, também ali era possível poupar aos outros a visão das coisas más. Oszka rompeu da varanda, sentou-se diante de Tomasz, o corpo percorrido por um frémito de excitação, ele gritou-lhe uma ordem em polaco, a segurar um biscoito na mão erguida, ela latiu, depois ladrou. Fê-lo quase a contragosto, como se não quisesse chamar as atenções, como alguém oculto que, num esconderijo, solta uma exclamação involuntária e logo se arrepende. Perguntei a Tomasz que palavras usara, ele disse: “Dá-me a tua voz!”
Tomasz e Dorota nunca saberão o que aconteceu a Oszka, nunca irão conhecer os cambiantes da maldade humana que confluíram para mutilar assim a cadela. Enquanto lhe afagava de novo a cabeça, não pude deixar de imaginar alguns cenários macabros. Tentamos, a posteriori, entender as origens do mal. Quando em gestação, porém, a perversidade apanha-nos quase sempre desprevenidos, porque nos recusamos a acreditar que possa ser genuína, que possa tocar as raias do insuportável. Estamos tão indefesos como Oszka. Mas os objectos e os seres encontram maneiras de sarar as suas feridas, de aceitar o inaceitável, de esquecer, de endireitar um pouco o mundo. Baralhamos e voltamos a dar, repartimos o que era uno, deitamos paredes abaixo, transferimos a retrete e o lavatório deste recanto para aquele. Há coincidências e ramificações que encenam os finais felizes possíveis, atalhos que desatam nós cegos e dissociam os efeitos das suas causas para que possamos continuar a respirar. Oszka encontrou Tomasz e Dorota, o seu clamor foi ouvido. A mesa de carvalho achou um modo ínvio e implausível de migrar para a casa citadina dos proprietários originais, o prédio agora convertido numa colmeia de minúsculas cidades gregas obedecendo aos princípios do filósofo cujo nome nunca saberei.
Saímos de casa, deixando Oszka deitada na sua almofada, a seguir-nos com o olhar no momento em que Tomasz fechou a porta, e, enquanto descíamos a escada, perguntei-lhe o que significava em polaco o nome da cadela. Ele explicou-me que vira um filme russo de que gostara muito, Esposas Celestiais, sobre vinte mulheres cujos nomes começavam, sem excepção, pela letra “O”. Mas uma delas, chamada Oszanaj, ao contrário das restantes, nunca surgia no ecrã. Partira para longe, explicava alguém. Apenas se ouvia recitar um poema de amor que um apaixonado lhe dedicara. Oszka era a abreviatura de Oszanaj, o nome da ausência.
Junho, 2023