Individualidade sim, individualismo não

A valorização excessiva da individualidade pode conduzir a um insuflar do egocentrismo infantil, com o risco de transformar a criança num ser autocentrado, caprichoso e com falta de empatia.

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Quando é demasiado, o autocentramento pode dificultar a socialização da criança DR/ Michal Parzuchowski via Unsplash
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A valorização da individualidade da criança encontra-se hoje em dia normalizada, tanto na esfera familiar quanto na escolar. Por contraposição, com a massificação educativa despersonalizada, que prevaleceu durante um longo período de tempo, hoje em dia procura-se ter em conta a singularidade, os desejos, as expetativas, as potencialidades e as necessidades dos mais novos.

Segundo o filósofo Gilles Lipovetsky, na obra A Sagração da Autenticidade, colocou-se esta nova crença num pedestal, que se concretiza em “respeitar a personalidade singular da criança, escutar as suas necessidades, responder aos seus desejos específicos e favorecer a sua maior felicidade”. Para concretizar este ideal, a educação passou a ter como principal objetivo “permitir à criança ‘ser ela própria’, enquanto ser único e singular, com a finalidade de que seja feliz e autónoma”.

Na perspetiva deste autor, “já não se trata de ensinar a dureza da vida às crianças, de as preparar para a adversidade, nem de inculcar o sentido do dever e da obediência”. Pelo contrário, ao eleger a ética da autenticidade como componente primordial da cultura educativa, tornou-se necessário fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que acedam, o mais cedo possível, a uma existência individualizada.

Esta crença enquadra-se naquilo que considera uma revolução moral sem precedentes na história, de acordo com a qual o ideal da autenticidade pessoal é eleito à categoria “de peça central da cultura do mundo moderno democrático, do universo que oferece aos indivíduos a liberdade de se autodefinirem, de se governarem, de fixarem as suas próprias leis”.

No domínio dos ideais, estes princípios parecem, sem dúvida, benignos. Contribuem positivamente para o desenvolvimento harmonioso da personalidade da criança, para a promoção da autoestima e da confiança nas suas capacidades, bem como para o desabrochar dos seus talentos e da sua criatividade, incentivando-a a afirmar-se enquanto ser único e especial.

O problema surge quando estes ideais se prestam a determinados equívocos, com consequências prejudiciais a nível educativo. Se a valorização da individualidade da criança for levada ao extremo, pode conduzir a um exacerbar do individualismo, que contraria, na essência, os princípios que pretendia promover.

A valorização excessiva da individualidade pode conduzir a um insuflar do egocentrismo infantil, com o risco de transformar a criança num ser autocentrado, prepotente, caprichoso e com falta de empatia. Poderíamos pensar que estas caraterísticas, apesar de serem disruptivas para os adultos, poderiam, pelo menos, tornar a criança mais feliz. Mas nem tão pouco isso é verdade.

Quando é demasiado, o autocentramento pode ser responsável pelo desenvolvimento de autoestimas insufladas, mas frágeis, dependentes do sucesso, e pouco resistentes ao fracasso. Cria, também, dificuldades na socialização da criança, tornando-a conflituosa e relutante em fazer cedências, o que naturalmente tem um impacto negativo na relação com os pares, alguns deles igualmente egocêntricos.

Excessivamente centrada na satisfação dos seus desejos e vontades, a criança tende a tornar-se hedonista, privilegiando o imediatismo em detrimento de objetivos mais consistentes e duradouros, que implicam maior comprometimento e empenho da sua parte.

Assim, este hedonismo pode dificultar o processo de amadurecimento, visível na altura em que se torna necessário ser capaz de adiar a recompensa momentânea, para assumir tarefas que podem ser menos agradáveis no presente, mas que são essenciais para que nos possamos projetar e ter sucesso no futuro.

Este ideal da autenticidade, tal como é encarado atualmente, é questionado por Gilles Lipovetsky, que aborda na sua obra os diferentes paradigmas do eu autêntico: numa primeira instância, mais elitista, heroico e exigente; e, numa segunda instância, mais generalizado, democrático e banalizado.

De acordo com a sua análise, numa primeira fase, a autenticidade pessoal afirmou-se como um ideal inseparável de uma ambição moral elevada, assente na dignidade pessoal, no dever de liberdade para consigo próprio, na recusa da hipocrisia e no compromisso com a liberdade. Nessa fase, “o combate para ser eu próprio travava-se não tendo em conta a felicidade ou o prazer, mas em nome da verdade, da liberdade, da dignidade humana e da elevação moral”.

Por contraposição, a atualidade carateriza-se pela inflação generalizada das exigências de ser eu próprio. Eclode uma nova época, marcada pelo reinado da autenticidade normalizada, integrada, institucionalizada, que constitui a fase histórica da cultura individualista de ser eu. Nas palavras de Lipovetsky, “be your self afirma-se como um direito individual reivindicado pela maioria, em todas as categorias sociais, em todas as idades, em todos os géneros, ao mesmo tempo que ganha todos os setores da existência”.

A rutura entre estes dois paradigmas radica no facto de as demandas do eu deixarem de se exercer a título moral, para passarem a privilegiar a realização existencial dos indivíduos. Enquanto a primeira fase era norteada pela individualidade moral, esta é-o por um individualismo autocentrado, por um hiperindividualismo que tem como fim primordial o bem-estar do eu.

Na perspetiva deste filósofo, constrói-se outro mundo que banaliza ou des-heroiza a conquista de ser eu próprio: “passou-se do estado ético ao estado cool da autenticidade”. Neste contexto, instalámo-nos com toda a facilidade numa época de autenticidade pós-heroica, na qual a felicidade tem mais valor do que a virtude.

Nasce, desta forma, outro ser humano da autenticidade, que tem nas suas mãos inúmeras possibilidades em aberto, nomeadamente a de repensar a distinção entre individualidade e individualismo, privilegiando a primeira em detrimento da segunda na educação das crianças.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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