Em Guts, Olivia Rodrigo faz das tripas canção

O segundo álbum da estrela, entre pop rock pirralho e a balada confessional, cai facilmente no goto.

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Olivia Rodrigo ao vivo num programa da NBC, este mês, em Nova Iorque Rob Kim/Getty Images
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Prince, venha cá abaixo ver isto: um fenómeno adolescente apropriou-se do seu roxo. Olivia Rodrigo já o fizera em 2021, na capa do primeiro disco, Sour: a cor púrpura voltou a tingir angústias e hormonas. A então estrela da Disney pegou na caneta de gel cintilante (mais provavelmente no telemóvel, mas abracem o cenário!) e rabiscou histórias de ciúme justificado a posteriori, superação fingida e escárnio metódico. Transformou-as em baladas de caixão à cova e “rockalhadas” higiénicas, formas de soltar o bicho-carpinteiro da puberdade. Na tradição de Avril Lavigne e Hayley Williams (Paramore), resgatou um modelo pronto-a-cantar de purga emocional – decalcado por milhões de fãs no TikTok e, obviamente, dado o sucesso, cantarolado por vários adultos em segredo.

O segundo álbum, no caso das divas infanto-juvenis, é o baptismo de fogo. Ou seja, o momento em que o êxito meteórico se revela efémero (esgotado nas polémicas do estilo revista Bravo) ou então se comprova sustentado, capaz de convencer as massas e as rádios – normalmente acompanhado por uma reinvenção desconfortável e provocadora da persona “original”. Guts encontra Rodrigo bem lá em cima, com uma estirpe de longevidade viral e radiofónica que nunca foi fácil de apanhar, menos ainda neste star system fragmentado, uma economia pop em défice de atenção.

Esse triunfo é especialmente admirável à luz do novo disco: mais uma demão de roxo, idêntica à capa anterior; mais um conjunto de “rockalhadas” e baladas (agora por esta ordem, felizmente). Não precisou de uma reinvenção desconfortável, uma Olivia Rodrigo 2.0 a chocar pelo erotismo ou pela novidade. Aliás, o que pode uma estrela pop desencantar em 2023 para ser motivo de choque, num mundo pós-Miley Cyrus, pouco impressionável? Já bastou o risco de saltar de High School Musical: The Musical: The Series, série da Disney+, para um primeiro single a solo – com um palavrão!

O disco de estreia era já revelador de uma compositora com bons instintos: os versos, ricos em detalhe emotivo, justificavam os refrães de todo o tamanho, sedentos de grandes arenas (aquelas que Rodrigo poderia ter esgotado na sua primeira digressão, se não tivesse optado por limitar-se a teatros e auditórios). Era também maçador e monocórdico, como qualquer (disco sobre) desamor, batendo quase sempre numa de duas teclas: pop-rock birrento, tão contagiante quanto indigesto, e choradeiras simpáticas, mas aborrecidas.

Em Guts, de volta à terra de ex-namorados e desequilíbrios, Rodrigo remenda alguns desses buracos. Parte da glória volta a ser de Daniel Nigro, pau para toda a obra pop – da variante luminosa de Kylie Minogue e Carly Rae Jepsen, ao sabor mais histriónico de Caroline Polachek ou Sky Ferreira (há aqui ecos de Night Time, My Time). Mas a vitória maior está na escrita de Rodrigo, dotada de mais perspicácia – frutos da idade, chegada aos 20 anos. O coração partido já não monopoliza um álbum inteiro, nem se manuseia apenas com fatalismo, inveja e autodepreciação: coisas divertidas à primeira, desgastantes ao fim de 11 faixas.

Na síntese brutal de Vampire, single de apresentação, Rodrigo já dizia ao que vinha: a autocomiseração misturada com espírito de vendeta, a balada convencional tratada com a pompa de uma opereta rock. O resto do disco mantém esta tensão dentro-fora entre perspectivas, permitindo a distância necessária para rir, por exemplo, da sua própria ansiedade social (Ballad of a homeschooled girl). A paródia de All-american bitch, autocaracterização subcontratada ao desejo masculino/americano, vai dar ao relato sórdido de Bad idea right?, sobre voltar à cama de um “ex”. Planeia reconquistá-lo em Get him back!, apenas para o manipular; na canção seguinte, admite que o amor é uma fantochada sem jeito nenhum.

É claro que esta leveza, muito bem-vinda, tem o seu contrapeso (além dos pesos mortos Lacy e The grudge): quatro novos lamentos para levantar o isqueiro ou a lanterna do telemóvel. Nos melhores momentos, como Logical, Rodrigo aproxima-se da candura desconfortável de Alanis Morissette, pelo filtro obsessivo de Taylor Swift e Billie Eilish. O auto-escrutínio em Teenage dream (certamente não o de Katy Perry) sublinha a estranheza desta posição: uma jovem adulta a governar o estado da pop, mesmo resguardada e milionária, continua a ser uma jovem adulta.

Guts é o trabalho de quem tomou consciência disso, com cautela para não se ensimesmar. Entre fazer as pazes com a desgraça adolescente e rir-se a caminho do banco, Olivia Rodrigo já não tem de escolher.


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