O Caso do Cadáver Esquisito 10: “O fantasma que gostava de mulheres”, por Luís Serpa

O 10.º episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo. Aqui, entre Almirante Reis, os céus do mundo, os mundos.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos DR
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O Caso do Cadáver Esquisito: Apresentação de uma experiência surreal, misteriosa e viajada com histórias de ficção diárias na Fugas

Pronto, lá enganei mais uma. Às vezes penso que as mulheres precisam de fantasmas. Nunca acreditei muito nessa história dos príncipes encantados. Basta olhar para os trastes com que se casam. E o que dizem deles quando se divorciam ou quando ficam feministas. Passamos a monstros num ápice. Suponho que seja por isso: entre dois seres que não existem, escolhem-nos a nós, que também não existimos.

Enfim, isto é uma generalização. Cada uma é uma. Tal como os homens, de resto. Só não percebo é porque se enganam tantas vezes, todas elas. Depois chamam-nos, claro. Levam-nos ao café, dão-nos as mãos, falam connosco como se fôssemos vivos, vão passear à chuva. Com esta abri uma excepção. Ou melhor, duas: mascarei-me de preto e segui-a depois do “encontro”. Deve ter sido por causa da chuva, não sei. Gostei de a ver, cabelos molhados, a andar como se a tivesse possuído — no fundo, limitou-se a tocar-me na mão, mas aquilo lá por dentro devia andar numa confusão danada e a mulher parecia estar em transe. Lembrei-me de quando era vivo. Não há homem digno dessa condição que não se lembre dos seus prodígios manuais — e passados. Por uma razão qualquer os presentes nunca são tão bons.

Nós, fantasmas, temos pelo menos a vantagem de ter tido muitos passados. É-nos relativamente fácil enganar uma senhora, devolver-lhe a “profundidade”, o “mistério”, essas coisas todas que perderam — ou julgam ter perdido — com o último amor. Esta pareceu-me diferente, não sei porquê. Andava com uma palavra qualquer na cabeça. Não me dei ao trabalho de a ouvir, apesar de ela a repetir frequentemente. As mulheres gostam de se repetir, e nisso esta não era diferente. Não sei. Era outra coisa qualquer. Tocou-me na mão, falou-me da chuva e eu dei por mim a perguntar-me quem tinha enganado quem. Claro que me recompus, há muito que não vou em cantigas. Mas tive ali um momento de dúvida, um estremeçãozinho. Um frémito.

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Carlos Matos

A verdade é que por muita experiência que se tenha cada pessoa nova é um abismo novo. Porque é que uns nos atraem mais do que outros é matéria para psicólogos, não para fantasmas. Ou para banqueiros, vendedores de casas ou de carros. Esses sabem de que é feito um abismo e como enchê-lo. Eu não percebo nada disso. Não percebo nada de nada, aliás, com a possível excepção de aviões. Desço a avenida em direcção ao rio, tento perceber o que lhe vai na cabeça, agora bem molhada e pergunto-me se não é altura de ganhar juízo. Isto dos abismos e dos mistérios tem que se lhe diga.

Falhei, está bom de ver. O raio da mulher avança muito devagar à minha frente, sempre naquela espécie de transe, como se estivesse a ouvir vozes. Se calhar o que ela repetia não era dela. Vinha dessas vozes interiores. Acontece muitas vezes, mais nas mulheres do que nos homens. Nós somos simples. Também nos acontece ouvir vozes, note-se, mas pelo menos é uma de cada vez e as ordens são claras. Elas não: são uma catarata polifónica. Sendo fantasma, um tipo apercebe-se disso mais facilmente porque elas só nos vêem quando queremos. Já me aconteceu ficar horas ao lado de uma sem ela saber. Era daquelas que não queria saber de fantasmas, estava no período “príncipe encantado”. Não me apresentei para lhe não estragar o sonho. (O tanas: não quis foi levar uma tampa.)

A esta, que agora vai à minha frente pela Almirante Reis em direcção ao rio, comecei por deixar uma caixa à porta. Vazia, claro, não fosse a coisa descambar. Além disso já não tenho força para caixas cheias nem para histórias que começam mal. Escolhi-a ao acaso. O frémito só me veio depois, como o medo: aparece depois da urgência. Durante a tempestade estamos demasiado ocupados a safar-nos dela. O cagaço vem depois. Foi o que me aconteceu com esta miúda, suponho. Pus-lhe a caixa à porta — é um dos meus critérios para as abordar. Se lhe dão um pontapé não lhes ligo; se virem naquilo uma “caixa de Pandora” avanço. Para esta disfarcei-me de preto velhote, mãos rugosas como se tivessem pegado numa enxada a vida toda.

Na verdade, fui aviador, no tempo dos Dakotas et simili, Cessna Caravan, por exemplo. Pilotei um dos primeiros, em meados dos 1980. Também tive o privilégio de voar o King Air 1900, essa maravilha... Já adivinharam: trabalhava “fora da pista”. África, América do Sul, Sudeste asiático. Nem todas as pistas aonde aterrei eram muito católicas, devo dizer; nem todas as cargas que transportei, nem todos os passageiros que embarquei. Um raio de uma vida, é o que é, para agora andar a pôr caixas vazias à porta de mulheres que nunca vi mais gordas e a percorrer a Almirante Reis cheio de tremores, como se tivesse malária.

Eu sei o que me atrai nela, mas ando para aqui a dar voltas ao penico porque não quero sequer sonhar que afinal não morri. O maior inconveniente da vida de fantasma é esse: não acaba nunca. Não morremos. Estamos sempre cá para quem precisa de nós. Se ao menos deixássemos de ter sentimentos. Isto é: de ser atraídos pela fragilidade de uma senhora bonita e sensível que avança em direcção ao Tejo como se tivesse acabado de ver um fantasma.


O AUTOR: Luís Serpa
Nasceu no hemisfério norte, cresceu no hemisfério sul, tem visitado frequentemente o Oeste e anda sempre a Leste. O mínimo que se pode dizer é que não é difícil. Por influência paterna o mar atraiu-o desde muito cedo. Tentou fugir-lhe meia dúzia de vezes, mas corre mais depressa do que ele (não é difícil). Conseguiu fugir-lhe quando o quis abraçar de demasiado perto: no mar da China, no Atlântico, num porto do Nordeste brasileiro, no golfo da Biscaia. Tentou engoli-lo, mas feito Jonas fez-lhe cócegas no ventre e ele cuspiu-o. Mais tarde, no lago Tanganica, no Burundi, no então Zaire, fugiu de hipopótamos, crocodilos e Kalashnikovs. A melhor qualidade de um marinheiro é saber correr e iludir quem o quer dentro e não ao lado.

Foi baptizado na pia (baptismal) do cepticismo por um padre chamado Não Alinho Em Bandos, Grupos, Partidos ou Clubes. Devido sem dúvida a uma mistura de inércia, abulismo e incapacidade congénita ainda não saiu dessa pia (baptismal). Esse padre continua ao seu lado, sem esmorecer.

É sensível a umas coisas e insensível a outras, o que demonstra que não é diferente de ninguém e é igual aos outros, aspiração de sempre. Teve várias experiências empresariais cujas taxas de insucesso foram de 100%, o que demonstra que com muito trabalho tudo se consegue. A sua música favorita é um canto tradicional Inuit chamado Canto de Ossanha. Tem um blogue e dois filhos; em breve terá dois netos e três livros, o que é mais do que esperava.

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