Na aldeia do Boco, seguimos o rasto ao pão, das azenhas à broa acabada de cozer

Localizada no município de Vagos, em plena região da Gândara, esta Aldeia de Portugal convida-nos a passear entre as suas levadas, a amassar e a cozer a broa e a prová-la no final.

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"“Vamos fazer broa mimosa, que é característica da nossa zona" Nelson Garrido
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Alfredo Neves tem duas teorias para explicar a sua forte dedicação às azenhas e à moagem da farinha. A primeira é comunicada em tom de brincadeira — diz que, em criança, terá sido mordido pelo bicho-da-farinha —, mas a segunda tem tudo para ser levada a sério.

“Fui criado aqui, a ver a minha avó paterna a moer farinha e essas imagens ficaram marcadas”, conta, evocando a ti Luísa, última moleira daquela azenha. Última, mas só até 2013, uma vez que Alfredo Neves está, aos poucos, a seguir-lhe as pisadas. Quando chegar à reforma —​ tem 64 anos, portanto, já não falta muito —, promete tornar-se “moleiro a tempo inteiro”. Até lá, vai assumindo o cargo nas horas vagas, acumulando as funções de moleiro com as de guia turístico.

É ele quem abre as portas da Azenha da Ti Luísa, edificado que servirá de ponto de partida e também de chegada para uma experiência na aldeia do Boco, no município de Vagos, que nos deixa de estômago e de coração cheio.

Alfredo Neves guia-nos neste passeio nelson garrido
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Naquela pequena localidade, onde predominam as habitações com características singulares da região da Gândara (conhecidas por casas gandaresas), os moinhos e as azenhas são parte da paisagem — desde o ano de 1453 que existem registos sobre as azenhas do Boco.

Em tempos, foram “14 azenhas e três moinhos de rodízio” — o moinho de água utiliza uma roda colocada horizontalmente, enquanto a azenha utiliza uma roda vertical — a trabalhar em pleno e a moer a farinha, conta Alfredo Neves. Hoje, restam muito poucas em actividade, mas há quem acalente a esperança de que o exemplo de recuperação da Azenha da Ti Luísa seja replicado — a classificação do Boco como Aldeia de Portugal tem dado uma ajuda ao turismo.

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Começamos a visita pelo cabouco, onde funcionam “a roda e o carreto que transmitem a força para a mó”. Em cima, na zona da moagem, Alfredo Neves explica como é que o cereal passa de grão a pó, ao mesmo tempo que coloca uns punhados de milho amarelo na moega. “Através da vibração da quelha, os grãos vão caindo no orifício da mó”, pedra pesada e redonda da qual vai já saindo milho moído. “Isto é regulável. Dá para fazer farinha mais fina ou mais grossa”, explica, antes de nos apresentar a alguns equipamentos, entre os quais se inclui uma antiga debulhadora, que tem ali em exposição. “Qualquer um destes objectos tem mais de 100 anos”, afiança o actual proprietário da Azenha da Ti Luísa. Alfredo desconhece a data de origem daquele edifício; apenas tem documentado o ano de reconstrução (1949).

A “aula” prossegue no espaço exterior da Azenha da Ti Luísa. Fátima Rito e Rosa Irene tinham o fervedor ao lume e a amassadeira pronta. “Vamos fazer broa mimosa, que é característica da nossa zona, e leva farinha de milho acabada de moer aqui na azenha”, introduz Fátima, antes de começar a juntar os ingredientes: ovos, açúcar, farinha de trigo, farinha de milho, fermento, água, manteiga e canela.

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Tudo feito à frente dos visitantes, que têm direito a pôr as mãos na massa. “Não há muita gente a fazer esta broa e a particularidade é que tem de ser amassada à mão e cozida no forno a lenha”, destaca, por seu turno, Cristina Azevedo, técnica de turismo da Câmara Municipal de Vagos. Terminada a força de mãos, faz-se a reza —​ “Deus te levede, Deus te acrescente como o milho dá semente” —​ e espera-se que a massa cresça.

Caminhar por entre levadas

A água que alimenta as azenhas e moinhos do Boco brota de uma nascente e “vai serpenteando, através de levadas”, ilustra Alfredo Neves. São três — Levada do Barreto, Levada dos Moleiros ou Levada do Meio e a Levada do Sul — e podem ser descobertas num trilho que atravessa o vale do Boco, e no qual é possível observar uma floresta com algumas espécies autóctones de características atlânticas.

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Pomos pernas a caminho, com direito a passar por mais algumas azenhas do Boco. Mário Ribeiro abre as portas da Azenha do Barreto, visitável, mas “a precisar de uma boa reforma”, adverte. “Isto tem mais de 100 anos e era também casa de habitação do moleiro”, acrescenta.

Prosseguimos trilho fora, ao som da água que corre nas levadas e em direcção a um outro engenho. “Os moleiros tinham de vir regularmente às levadas para ver se estava tudo bem e se a água não entupia”, repara Alfredo Neves. Recorre ao pretérito, mas a verdade é que ele próprio, nas horas vagas, vai assumindo essa responsabilidade, conforme a Fugas pôde constatar durante aquela caminhada. O percurso passa por uns lavadouros públicos, pelas ruínas de um moinho e de uma azenha, e, mais à frente, pelo Moinho do Benjamim.

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À nossa espera está o próprio dono, Benjamim Simões, que trouxe consigo vários documentos que atestam a antiguidade daquele moinho — há referências a 1925 e também uma licença da Direcção Hidráulica do Mondego datada de 1940 — e um lanche irresistível: rojões, chouriça, azeitonas, bolo caseiro e pão de cornos. Trocando por miúdos: “É um pão de azeite que era feito aqui na aldeia do Boco e tem a forma de uns cornos”, explica.

Com as forças retemperadas é tempo de voltar ao trilho, novamente ao longo do curso de água e agora já de regresso à Azenha da Ti Luísa, para ajudar a retirar as broas mimosas do forno. Fátima Rito e Rosa Irene recebem-nos com a mesa posta. Além das broas quentes, há requeijão, doce de abóbora e queijadas de abóbora — ou não fossem elas dirigentes da Confraria Sabores da Abóbora —​ sobre a mesa.

Não enjeitamos o desafio, mesmo vindo já com o estômago aconchegado do Moinho do Benjamim. Afinal de contas, sempre foram 2,5 quilómetros de caminhada, com subidas e descidas.

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