Afivelar a máscara

Há muitos anos que tinha descoberto uma máscara; uma máscara para ninguém desconfiar que preferia não o fazer. A máscara era um sorriso, uma boca de curva ascendente.

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Megafone P3: Afivelar a máscara Tima Miroshnichenko/ Pexels
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Como Bartleby, "preferia não o fazer" quando o chefe lhe dizia para apressar alguma tarefa que andava a procrastinar. "Preferir não o fazer" não era opção no seu trabalho ou na vida pessoal. Em casa, um marido hipocondríaco que tinha de acompanhar recorrentemente às urgências do hospital público.

Voltavam sempre sem um diagnóstico que o satisfizesse, por isso o mais certo era serem encaminhados, um dia destes, para a ala de Psiquiatria. "Preferia não o fazer" quando se sentia asfixiada no tráfego a caminho de casa ou do supermercado, e ainda assim era uma tarefa que estava obrigada a fazer porque o frigorífico não se enchia sozinho nem o seu estômago se alimentava do ar.

Há muitos anos que tinha descoberto uma máscara; uma máscara para ninguém desconfiar que preferia não o fazer. A máscara era um sorriso, uma boca de curva ascendente, que afivelava todos os dias assim que acordava. "Preferia não o fazer", mas tornara-se um hábito como escovar os dentes. Já nem sabia qual era o seu rosto verdadeiro.

Um dia no escritório, na pausa para o almoço, foi à casa de banho e viu-se ao espelho. A máscara que sentia colocar todos os dias tornara-se real. Tinha mesmo uma máscara, como o emoji do palhaço. Uma carantonha branca com a boca emoldurada a vermelho.

"Preferia não o fazer", ter de sair do quarto de banho e revelar-se assim aos colegas de trabalho. Ficou durante alguns minutos incrédula em frente ao espelho. Tacteou a cara para confirmar com os dedos aquilo que os seus olhos lhe diziam. Tentou arrancar a tinta branca do rosto e o vermelho da boca com as unhas, até arranhar e doer. Contudo, a tentativa de tirar a máscara não surtiu qualquer efeito.

Pensou em telefonar ao marido, porém logo percebeu ser uma péssima ideia. Certamente lhe diria que se tratava de alguma doença de pele ou de um vírus desconhecido. Era inevitável ter de voltar à sala de trabalho. Espantou-se quando os colegas se cruzaram consigo e pareceram nada notar. Tinha a certeza de ter visto a máscara real, o tal emoji de palhaço, ao espelho. Pensou em perguntar a algum dos colegas se não via nada de estranho na sua cara. Preferiu não o fazer, e continuou a trabalhar.

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