Pode aparecer alguém

A mulher apercebe-se e lembra-se de todas as respostas não dadas ao longo da vida, de todas as respostas inteligentes que poderia ter dado e de que só se lembrou depois, e sente-se desolada.

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"A mulher sente uma raiva desproporcionada" Peter Olex/pexels
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Era uma vez uma mulher que tinha uma casa de férias arrendada, que se verificou que estava com percevejos, e que por isso teve de ir com a família para um hotel. Essa mulher pesquisou o que era um percevejo e arrependeu-se logo de o ter feito. “Um parasita oval que se alimenta exclusivamente de sangue humano”; “São encontrados em todo o mundo e podem infestar qualquer local no qual as pessoas possam descansar.” Essa mulher mal dormiu, e sonhou que tinha o corpo cheio de percevejos. O efeito de inibição do descanso destes parasitas resultava até através do pensamento. Um bicho que tem como objectivo impedir o ser humano de descansar. O Grinch das férias de Verão.

Essa mulher lembrou-se que tinha de entregar uma crónica, e sentou-se na pequena mesa do quarto a escrever o texto. Essa mulher não estava totalmente triste. É certo que não era possível ignorar a angústia entranhada na colcha cor de âmbar do hotel Miramar, onde não se mira mar algum. Ou no quadro de uma savana africana ao pôr-do-sol, cuja aleatoriedade temática não deixava de ser intrigante. Ou no chinelar da pequena multidão para a sala de pequeno-almoço, onde se faz fila diante de uma travessa de ovos mexidos embebidos em leite. Tão pouco o ar de desprezo da recepcionista, quando lhe pediu para baixar o som das televisões de uma sala de estar vazia, a fim de escrever a crónica. “Não pode ser. Pode aparecer alguém.”

A mulher sente uma raiva desproporcionada. Pode aparecer alguém, e seria catastrófico que, durante dois segundos, não houvesse som no relato da passadeira vermelha e na repetição de um jogo de futebol. Pode aparecer alguém que exija que o som das duas televisões esteja ligado em simultâneo. A mulher sente-se minúscula, destronada por esse ser hipotético cuja exigência imperativa absurda de ter duas televisões com som destrona o pedido real que agora está a ser feito. O de silêncio momentâneo. “Pode aparecer alguém.” Essa mulher constata que o mais provável é que ela não seja alguém. Porque ela apareceu, fez um pedido real perante uma sala vazia e este não foi concedido. Porque alguém pode aparecer. Alguém a sério.

A mulher escreve primeiro com uma fúria desmedida direccionada à funcionária. Percebe agora que deveria ter dito uma frase de efeito: “Eu sou alguém e apareci” ou qualquer coisa do estilo, mas é tarde demais, e seria descabido ir lá de novo e dizer isso. A mulher sente-se irritada por não ter tido a inteligência e a bravura de fazer frente à recepcionista e, juntamente com isso, apercebe-se e lembra-se de todas as respostas não dadas ao longo da vida, de todas as respostas inteligentes que poderia ter dado e de que só se lembrou depois, e sente-se desolada.

Essa mulher também sabe que a raiva perante a funcionária é a raiva perante os pequenos poderes e as suas regras absurdas e desumanas. Mas é também a raiva contra os percevejos e, provavelmente, a raiva contra as injustiças, e a tristeza de todas as desilusões.

Essa mulher está, então, no quarto. Ou melhor, o seu corpo está no quarto, a sua mente está lá em baixo, a dar um espectáculo de oratória, aplaudido pelos hóspedes da sala de espera. A sua mente está a ver a recepcionista, derrotada, a abdicar da posse exclusiva dos comandos da televisão, e a carregar no mute. A sua mente está a terminar a crónica, vitoriosa, nessa sala.

Esta mulher sabe que no Verão não fica bem falar de tristeza. Ela sabe que no Verão nunca se está triste ou irritado.

Mas esta mulher sente que os percevejos estão muito mais felizes do que ela, algures numa casa só para eles.

Esta mulher habituou-se a sentar-se e escrever qualquer coisa. Às vezes escreve nas notas do telefone à noite deitada na cama, como antigamente os poetas à luz de uma candeia.

Ela escreve porque é a forma que conhece de lidar com as suas raivas ridículas, com as suas tristezas, pequenas ou grandes. Ela escreve porque, na melhor das hipóteses, pode aparecer alguém. De preferência, ela própria.

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