Fazer scroll aos pensadores

Há uma contradição que o ser humano tem vindo a cometer: pensar que tudo sabe e compreende, e que sentar-se a pensar no mundo ou escrever sobre o que o inquieta é uma perda de tempo.

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Dois apontamentos sobre dois pensadores actuais. O primeiro aconteceu numa conversa com amigos, onde um deles disse: “O historiador Yuval Noah Harari é pago para pensar por nós.” O segundo apontamento, lido numa entrevista recente sobre o filósofo, conclui que os livros de Byung-Chul Han são apenas uma exposição pronta de muitos dos pensamentos que todos já tivemos.

Estas afirmações não só subestimam a obra dos evocados, como se não passassem de uma compilação de senso comum acessível a todos, como ao mesmo tempo revelam uma contradição que o ser humano tem vindo a cometer: pensar que tudo sabe e compreende, e que sentar-se a pensar no mundo ou escrever sobre o que o inquieta é uma perda de tempo.

Acredito que o total acesso à informação, em todo e em qualquer lugar, nos remete a uma posição de assoberbamento e letargia: “Alguém já pensou isto; isto já foi dito e escrito; isto já foi pensado”. Cai-se com facilidade numa "pré-desistência" e a desenfreada procura pelo que é novo, a mesma sofreguidão que nos leva a fazer scroll infinito pelas redes sociais e sites de notícias, não só nos imobiliza ainda mais, como nos leva a um estado de permanente insatisfação intelectual.

O algoritmo conduz-nos a um loop: lemos o que procuramos, identificamo-nos com o que lemos, e continuaremos a ler um espectro de assuntos que dificilmente nos trará contraditório, e sem esse contraditório, sem esse potencial heurístico, a nossa mente acomoda-se. Não queremos perder tempo a pensar, mas também ficamos insatisfeitos quando encontramos algo que julgamos já compreender. Perante esta contradição, a velocidade do scroll aumenta, e o nosso tempo é gasto sem qualquer proveito.

Esta constatação não nos coloca num lugar bonito: tornamo-nos severos críticos sobre quem ousa parar para pensar e escrever; da mesma forma que ao assistir a um programa de culinária, nos satisfazemos a apontar algum deslize do cozinheiro, mas mantemo-nos sentados no sofá sem ousar experimentar a receita simples na nossa cozinha. Desistimos da posição de pensadores para assumir a posição de "polícias-do-pensamento" (vejam-se os comentários nas redes sociais sobre qualquer assunto).

Socialmente, isto afecta-nos há muito. A sabedoria virtual oferece-nos uma experiência enganadora: consegue transmitir-nos a certeza de estarmos dentro de todas as notícias, de todas as tendências, de todas as descobertas e factos, quando na verdade, sem a experimentação e interiorização, tudo nos escapa e é esquecido no scroll seguinte. Podemos pensar que isto não é grave, que não nos afecta. Acontece que este excesso de informação face à nossa inacção conduz-nos a uma normalização de todas as notícias. Basta observarmos o ponto a que o ser humano conduziu o planeta e a insensibilidade com que olha para essa catástrofe anunciada.

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