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Noir e implacável é a fábula da iniquidade em Londres
Milhares de raposas representam uma classe operária em crise, numa Londres implacável. Em I'll Bet the Devil my Head, o fotógrafo Carlos Alba tece uma crítica irónica, mordaz, ao capitalismo.
Ao longo seis anos, entre 2013 e 2019, o fotógrafo espanhol Carlos Alba viveu em Tower Hamlets, em Londres. O município tem duas características bastante distintivas: se, por um lado, é ladeado de duas das mais proeminentes zonas financeiras do mundo, a histórica Cidade de Londres e Canary Wharf, por outro, é a zona onde 43% das crianças vive na pobreza — a taxa mais alta de toda a capital inglesa.
"Dei início a este projecto porque queria documentar as grandes assimetrias que se verificam nas sociedades contemporâneas", contou o madrileno à editora VOID, a propósito do lançamento do seu livro de fotografia I'll Bet the Devil my Head. "Tentei abordar, de raiz [e neste contexto, em particular], problemas relacionados com dinheiro, privação de habitação e pobreza infantil."
E fê-lo de uma forma inusitada, criativa: decidiu criar uma fábula em que raposas, corvos e humanos representam diferentes estratos sociais (fazendo recordar a obra orwelliana O Triunfo dos Porcos). "As raposas urbanas são o símbolo da classe operária, os corvos dos elementos de controlo social e os correctores [humanos] representam as elites", desvenda o fotógrafo.
Depois do Sol posto, em Londres, praticamente à mesma hora, yuppies e raposas saem à rua — os primeiros, em busca de descanso ou lazer, as segundas em busca de alimento. Carlos Alba, fotógrafo da vida selvagem, estudou com rigor o comportamento de ambos para captar as suas essências predatórias. Se os yuppies da alta finança fazem uso desse instinto para promover a desigualdade e tirar vantagem pessoal e corporativa, as raposas usam-no estritamente para sobreviver em ambiente hostil, na base da escala social. Nas imagens de Alba, sobre todos se abate a escuridão de um ambiente asséptico, implacável, feito à base de betão, ferro e vidro, digno de um filme noir.
A cidade de Londres era o local ideal para esta formulação simbólica, já que mais de 10 mil raposas vivem nos jardins, parques e ruas da cidade — uma espécie de "praga" que ou encanta ou melindra os londrinos. Surpreendentemente, a discussão em torno do controlo desta população de canídeos assumiu conotações políticas, quando, em 2013, Boris Johnson, ainda longe de Downing Street mas já propagandista fervoroso do Brexit, apelou à intervenção sobre um fenómeno que considerou uma "ameaça" à saúde e segurança públicas. Ser ou não apoiante dessa intervenção anti-raposas passou a simbolizar o apoio a um ou o outro lado do divórcio com a União Europeia.
Em contraste com as fotografias que produziu, o design do fotolivro de Alba adopta uma linguagem gráfica infantil, remetendo para os livros de fábulas com que tantos convivemos durante a infância. "Gosto de brincar com essa linguagem universal do conto que conta uma verdade moral que pode ser interpretada por crianças, adultos ou idosos", resume o fotógrafo.