Existir sem email ou redes sociais? A Analog Sea é um elogio à vida offline

Disseram-lhe que era um “tiro no pé”, mas a editora de Jonathan Simons tornou-se um sucesso. “Não precisamos da Internet ou das redes sociais para tudo. Ainda temos o botão de desligar”.

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Jonathan Simons na livraria Palavra de Viajante, em Lisboa. A sua editora é um manifesto por uma vida mais lenta e com menos ecrãs Daniel Rocha
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Foi fundada em 2018 com uma ideia: tirar do mundo livreiro os algoritmos das lojas online e o imediatismo com que compramos um livro hoje em dia – em meia dúzia de cliques, sem contacto humano. Jonathan Simons, norte-americano de 44 anos, é o rosto da “editora offline” Analog Sea, baseada em Freiburg, na Alemanha, e com um “pequeno escritório” em Austin, no Texas, Estados Unidos.

A Analog Sea não tem email público, redes sociais e recusa vender online. As aprimoradas edições da Analog Sea são encontradas apenas em cerca de 250 livrarias espalhadas pelo mundo – em Portugal, encontram-se na 100.ª Página, em Braga, e na lisboeta Palavra de Viajante. Quer contactar a editora? Envie-lhe uma carta.

Publica livros, mas é conhecida sobretudo pela revista bianual The Analog Sea Review, antologias de textos antigos e contemporâneos – de Leonard Cohen a Byung-Chul Han, de David Foster Wallace a Chopin e Richard Powers. Nos seus pequenos ensaios, entrevistas, poemas, cabem elogios à vida desacelerada, aos cafés e livrarias, ao espírito do jazz, à caminhada como alegria contemplativa, e reflexões sobre os sonhos, o tempo… Com capa dura e design cuidado, cada edição é um item coleccionável.

A Analog Sea recebe diariamente dezenas de cartas de leitores que procuram uma vida menos dependente dos ecrãs. Simons defende que há partes da nossa vida – como as artes e os encontros entre humanos que elas devem propiciar – que devem existir offline. Defende um regresso ao que chama “cultura offline”, via para uma “vida contemplativa”. “A arte exige interioridade”, escreve no “manifesto offline” que publica no terceiro número da revista. Foi na Palavra de Viajante que entrevistámos Jonathan Simons.

Quem é Jonathan Simons? Não há muita informação online...
A minha formação académica é em Filosofia e Psicologia Budistas, e em Literatura Inglesa. Mas fiz sempre muitas coisas diferentes. No Verão, era um cantautor em digressão. Curiosamente, era também um grande tecnófilo: esperei numa longa fila na Apple Store, em 2007, para comprar o primeiro iPhone. Os funcionários bateram-me palmas: fui um bom consumidor. Para ajudar a pagar a renda, trabalhava como designer gráfico freelancer, programador web e de bases de dados. Estava completamente convencido da promessa digital de democratizar as artes e as ideias.

Porque é que a sua opinião sobre a tecnologia mudou tanto?
A tecnologia puxa-nos. E o meu iPhone, mesmo em 2007, 2008, 2009, 2010, estava a puxar-me cada vez mais. Estava a usá-lo para cada vez mais coisas e a passar mais tempo frente a ecrãs. Percebi que estava a mudar a minha forma de pensar. Sempre me atraiu uma vida contemplativa, a consciência poética. Sempre dediquei tempo a ler ficção, a pensar e a sentir. Quanto mais usava o telemóvel, mais a minha mente não se instalava nesse lugar de pensamento.

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Nas revistas Analog Sea Review há elogios à vida desacelerada, aos cafés e livrarias, ao espírito do jazz... Com capa dura e design cuidado, cada edição é um item coleccionável

Quando me mudei para a Europa, há cerca de 15 anos, fiquei tão preocupado com a forma como estava a afectar a minha mente e o meu pensamento que decidi não comprar outro telefone. Embora tenha muita tecnologia na minha vida e ache que as ferramentas digitais podem ser muito úteis, tento manter a tecnologia presa numa trela para que não tome conta de toda a minha vida. Por isso, não tenho telemóvel. Não tenho Internet em casa, mas tenho no escritório – e, quando viajo, utilizo muita Internet e muitas ferramentas digitais. É uma questão de equilíbrio.

O que o levou a fundar a Analog Sea?
Nunca quisemos ser dogmáticos sobre como as outras pessoas devem viver as suas vidas. Mas queríamos fazer algo que colocasse certas perguntas. E a primeira pergunta que fizemos foi: é possível que algo de valor no domínio público, para o bem público, nesta altura da história, esteja offline? Em 2018, as pessoas disseram: “É ridículo. Sem usar as redes sociais, nunca se chega a ninguém. Estão a dar um tiro no pé, não é possível.” E, cinco anos depois, estamos a enviar mais livros do que alguma vez sonhámos. Recebemos 20 a 30 cartas pelo correio todos os dias. Sentimos que o nosso trabalho está a ter impacto.

Não precisamos da Internet ou das redes sociais para tudo. Ainda temos o botão de desligar, ainda temos o contacto visual, ainda podemos encontrar-nos em cafés, ainda podemos manter uma certa intimidade na nossa sociedade.

Essa foi a primeira questão: pode algo de valor público estar offline? Estabelecemos certas condições para ver se é possível e para tomar posição. Não estamos a tentar ser um padrão, mas sim a tentar dar o exemplo.

Quando é que perceberam que a vossa ideia podia, afinal, funcionar? Foi um êxito instantâneo?
Não, não. Acho que só fiquei 100% confiante depois da pandemia porque o apreço dos nossos leitores e livreiros aumentou assim [faz gesto que indica uma forte subida]. Enviámos [aos leitores] um ensaio meu em defesa do ócio e da solidão, e um caderno chamado Notes from Solitude. Estava vazio, para que as pessoas pudessem preencher as suas próprias notas sobre a solidão – sentimos muita solidão durante a pandemia. Sem pedirmos, muitos devolveram-nos o caderno com ensaios, desenhos, caricaturas. Até publicámos um dos ensaios sobre Montaigne.

Temos muitas provas de que há um apreço por isto desde o início, mas até há pouco tempo não podíamos usar, com certezas, as palavras “sucesso” ou “sustentabilidade”. E agora podemos.

Numa Analog Sea Review, escreveu que há uma “cultura offline emergente”. O que é que as cartas que recebem dizem acerca disto?
Uma coisa interessante é que, antes da pandemia, a maior parte das respostas vinha de pessoas mais velhas. Diziam que se lembravam dos seus anos de juventude, antes da omnipresença do smartphone e da Internet. Mas, depois da pandemia, estamos a receber sobretudo cartas de jovens. A exaustão e os efeitos secundários, a perniciosidade de um estilo de vida digital… A conectividade constante afectou, por exemplo, os estudantes universitários durante a pandemia. Recebemos muitas cartas deles a dizer que querem algo mais rico e significativo. O estilo de vida digital é homogéneo, é fino como papel, é sensorialmente privado, é só visão e som.

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Estamos a receber muitas cartas de pessoas que dizem querer ter uma vida mais equilibrada, viver mais no mundo real e ser menos puxados para o mundo digital. E as nossas edições inspiram-nos e motivam-nos a conseguir esse equilíbrio, que nem sempre é fácil de atingir: um indivíduo, especialmente um jovem, que decide passar um dia offline ou uma tarde de sábado offline, sente que está a perder algo; sente que os seus amigos o estão a esquecer; sente-se exilado; sente que as lutas importantes no Twitter e a responsabilidade social foram negligenciadas. Como podemos ter um mundo equilibrado em que seja natural frequentar espaços offline, tal como é natural utilizar ferramentas digitais? Devemos ter ambos. E os jovens estão a tentar perceber isso em todo o lado.

Nos últimos anos surgiu, por exemplo, o conceito de “sabat digital”: um dia por semana sem ecrãs ou sem Internet...
É uma grande ideia.

O sabat, tanto o tradicional dia judaico como esta adaptação laica, tem especial força quando é praticado por um grupo. Dessa forma, um jovem não se sente excluído dos amigos: todos estão a praticar a abstinência de tecnologia nesse dia.
Muitas pessoas que estão constantemente ligadas esperam que os seus amigos e familiares façam o mesmo e estejam sempre disponíveis. O estilo de vida digital é um produto da promessa de um capitalismo de conveniência. Toda a ideia de Silicon Valley é vender-nos esta visão utópica de uma vida sem fricção, sem esperar por algo, sem esperar que um amigo responda a uma pergunta ou aceite encontrar-se connosco ou o que quer que estejamos a pedir. A promessa digital é que se pode ter tudo o que se quer imediatamente. Sempre que alguém me pergunta sobre como educar os jovens em torno desta noção, encorajo sempre as pessoas a fazê-lo em grupos, a ter também experiência em grupos. Para que não se sinta esse exílio.

Nos seus escritos também defende a necessidade de solidão. Mas essa é uma palavra complicada: está associada ao risco de depressão...
Os seres humanos nunca quiseram ter tempo para pensar e sentir, e para se esfregarem no vazio, mas nunca tivemos tecnologia suficiente para nos distrair a toda a hora. Uso o termo “intervalo contemplativo”. Se considerarmos um indivíduo antes de 2006/2007, que tenha uma vida muito ocupada, quer se trate de um socialite, de um agricultor ou de uma pessoa simples, esse indivíduo acaba sempre por ter estes pequenos períodos de tempo em que não há distracção. Referimo-nos ao tempo entre a saída do trabalho e a chegada a casa, ou à espera na fila do supermercado, ou à forma como as pessoas costumavam fumar e olhar para o céu porque estavam a pensar. Agora, preenchemos todo esse tempo – chamemos-lhe acidental, contemplativo – com os meios de comunicação social, o ruído, a conversa, as palavras, o stress, o capitalismo e o consumo.

Assim, a solidão, na sua ideia mais básica, pode ser considerada como tempo fora do mercado. Não me refiro apenas a dinheiro: a nossa atenção tornou-se uma moeda, o Twitter é um mercado, o Tinder é um mercado, o Facebook é um mercado. Sair deles e entrar na vida “selvagem” é como nos desenvolvemos como seres humanos, como desenvolvemos ética, empatia, ideias, desejo, o desejo de ter amizades profundas. Se nos privarmos de tudo isso ou se nos limitarmos a 60 segundos entre mensagens de texto, não estamos a desenvolver-nos como seres humanos e não estamos equipados com o tipo de ética e empatia de que a humanidade precisa para ser solidária e ter democracias saudáveis, com a consciência necessária para votar bem. Há consequências sociológicas muito grandes de uma sociedade completamente viciada nos meios de comunicação e num estado total de distracção e consumo.

O tédio está na origem de vários movimentos artísticos. É um rastilho criativo...
O tédio não é confortável, mas erradicar o tédio tem consequências tremendas. Uma criança desenvolve-se e um adulto continua a desenvolver-se, defendo eu, principalmente a partir do tédio. Do tédio vem a nossa imaginação e a esperança. Permite transformar a vida em algo significativo por comparação ao consumismo sem fim. E, para um jovem, o tédio é onde ele aprende a inovar, a ser autónomo, a pensar por si próprio. É essencial que as crianças e todos nós tenhamos momentos em que estamos aborrecidos.

Numa reportagem recente neste suplemento, muitos leitores de livros queixavam-se de terem perdido capacidade de concentração numa obra devido, em grande parte, aos muitos estímulos digitais. Por outro lado, nascem cada vez mais clubes de leitura: há sede de contacto humano, presencial...
Precisamos de intimidade suficiente, ou seja, de encontros humanos em sociedade para praticar a solidariedade, para que a sociedade funcione. Defendo que vem da interioridade o sentimento por trás da solidariedade e da prática cívica. É preciso ter interioridade suficiente para ter emoções e empatia, compaixão pelas outras pessoas. E depois vamos para a ágora, vamos para o mundo, e podemos ser um bom cidadão ou podemos orientar o Governo numa boa direcção. A história da filosofia e da religião também é feita em termos deste equilíbrio entre interioridade e exterioridade – precisamos de ambas. Mas eu defendo que, perdendo a interioridade, estamos a ser puxados para o mundo a cada minuto.

Deu aulas no reputado Max Planck Institute. Sobre quê?
No Centro para Humanos & Máquinas, em Berlim. Estavam a fazer muita investigação sobre inteligência artificial [(IA)]. Fui chamado para liderar algumas discussões e escrever alguns ensaios. Se olharmos para os códigos de ética das empresas de engenharia, pelo menos no mundo anglo-saxónico, normalmente têm que ver com propriedade intelectual – não roubar o código de outro programador. Não tem muito que ver com as implicações do trabalho na sociedade. Estamos atrasados, embora estejamos a recuperar rapidamente com a IA.

Deveria estar a ser feito mais?
Deveria haver uma abordagem muito mais humanista a esta ideia do que significa a ética digital.

Decisões de engenharia informática têm grandes impactos: o Facebook convida-nos a ser amigos de pessoas que partilham amigos connosco – e as “bolhas” foram aparecendo. E, claro, o algoritmo dá-nos aquilo de que já gostamos. São linhas de código que mudam a sociedade...
Há outro exemplo interessante. Há muitos anos, descobriu-se que o Facebook fez uma experiência simples. O número que indica quantas mensagens estão por ler era azul. Pensaram: “O que acontece se o mudarmos para vermelho?” A quantidade de vezes por dia que os utilizadores do Facebook verificavam as mensagens aumentou exponencialmente.

Mas aquilo com que estamos a lidar aqui é apenas neoliberalismo básico. Os governos adoram a ideia da tecnologia digital e da tecnocracia por muitas razões diferentes. Não compreendem a “caixa negra” por detrás do algoritmo. As empresas tecnológicas acabam por ter rédea solta. O Governo espera que o Facebook e o TikTok se possam regular a si próprios. Apesar de se terem tornado serviços públicos, não estão a ser regulados como serviços públicos ou como é a radiodifusão.

As pessoas estão cada vez mais online. Os trabalhadores de plataformas [TVDE ou serviços de entrega de comida, por exemplo] estão colados ao telemóvel a tentar fazer face às despesas, sobreviver. E, no topo do estrato socioeconómico, estão as famílias que dizem abertamente: “Não deixo os meus filhos terem um telefone.” As escolas privadas na América, cada vez mais, especialmente desde a pandemia, estão a ensinar educação offline. Entretanto, as escolas públicas continuam a encontrar formas de mediar tudo nos ecrãs.

Quer destacar outros projectos, além da Analog Sea, dessa cultura offline emergente?
Gostei de um artigo publicado no The New York Times sobre um grupo de adolescentes que criou aquilo a que chamou Luddite Club. Estes miúdos saíam todas as semanas em grupo e deixavam os telemóveis em casa. Faziam a loucura de se divertirem juntos sem serem constantemente interrompidos, com o seu tempo a ser fragmentado pelos telemóveis. Vamos continuar a utilizar estas ferramentas [digitais]. Paradoxalmente, vamos precisar de IA para policiar a IA. Estamos a entrar cada vez mais profundamente numa sociedade digital, mas precisamos de alterar o equilíbrio para que uma solução offline, como ir a um museu offline ou ter um jantar offline, se torne uma coisa perfeitamente natural.

Em termos de outros projectos como o nosso, devo dizer que ainda não vi o suficiente. Isso vai mudar. Estou esperançado, pela primeira vez nos cinco anos em que faço isto, porque a IA vai tornar-se tão estranha e perturbadora que, paradoxalmente, motivará mais pessoas a dissentir e a reagir contra ela, a tentar contrabalançar a loucura.

As pessoas vão pensar que fomos longe de mais?
Havia a ideia de que haveria um reequilíbrio natural ou de que o Governo tomaria conta do assunto. E estamos a ver que nada disso está a acontecer e que vamos ser muito puxados... Uma das coisas mais básicas de que precisamos para que a solidariedade e a civilidade aconteçam é um sentido partilhado da verdade. Mas a IA começa a inundar a Internet com falsidade. O cidadão terá cada vez mais cepticismo, o que significa desconfiança, e isso repercutir-se-á nas comunidades locais. E a única forma de o contrariar serão as iniciativas dos indivíduos, das escolas, dos governos, para criar um ressurgimento do comunitarismo. Regressarmos ao aqui e agora. Trazermos o lugar do nosso eu de volta às nossas comunidades. Penso que isso vai acontecer porque cada vez mais pessoas se sentirão obrigadas a ter uma postura crítica, tornar-se-á uma causa de activistas.

Nesta cultura tecnológica, o que nos torna humanos?
Possuir e exercer faculdades de imaginação e empatia para sonhar, ter esperança, pensar profundamente. Sermos capazes de aprofundar a nossa relação com o nosso mundo, quer isso signifique relações, quer saborear a comida mais profundamente, ou ir suficientemente fundo numa obra de ficção para sermos transportados. Se nos concentrarmos suficientemente num livro, numa história, o nosso cérebro começa a “disparar” como se as personagens fossem reais. Isso não acontece se lermos um parágrafo e depois nos distrairmos. Se lermos durante uns bons dez a 20 minutos, começamos a ser transportados e a praticar o que é ser-se humano. Estamos aqui, estamos a sentir empatia.

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