Preferia não o fazer

Se a discussão dos exames nacionais pode ser fundamental, a sua relação com o acesso ao ensino superior é questionável, dado que em educação não há lugar para uma só possibilidade.

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A neutralidade educativa não existe, fazendo com que cada medida política seja apoiada por uns e rejeitada por outros DR/Jeswin Thomas via Unsplash
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Poder-se-á analisar a questão da avaliação externa a partir da sociedade, em geral, ou das políticas educativas, em particular, mormente quando está em causa o número dos exames que os alunos devem realizar para a conclusão do ensino secundário e consequente acesso ao ensino superior.

Nenhuma das possibilidades pode ser ponderada de forma isolada, sendo certo que a escolha é o espelho da sociedade, refletindo contradições e abarcando soluções, inevitavelmente filtradas pela ideologia.

A neutralidade educativa não existe, fazendo com que cada medida política seja apoiada por uns e rejeitada por outros, apesar de haver consenso quando se diz que a educação é o mais poderoso instrumento de socialização, convertida, por autores da 2ª metade do século XX, em Aparelho Ideológico do Estado.

Sobre o acesso ao ensino superior, é conhecida a posição da OCDE, que defende o abandono do sistema de exames nacionais como condição de acesso ao ensino superior (conforme noticiado pelo PÚBLICO), apesar de ser a organização internacional que mais tem contribuído para avaliação externa baseada em testes. Em diversos relatórios e estudos, a OCDE tem sustentado que os exames nacionais não devem contribuir para a classificação que é ditada pela fórmula de acesso ao ensino superior.

Se é um exame ou se são dois, se inclui o exame a esta ou àquela disciplina, isso será, por assim dizer, determinado por uma dada organização curricular que consagra o papel do exame nacional como forma de valorização das aprendizagens.

A meritocratização associada aos exames nacionais tem uma linguagem assertiva na forma de julgar os resultados escolares, mas não traduz nem o processo de ensino e aprendizagem, nem o conjunto de competências desenvolvidas pelos alunos nos mais diversos aspetos da sua formação.

Com efeito, se a discussão dos exames nacionais pode ser fundamental, a sua relação com o acesso ao ensino superior é questionável, dado que em educação não há lugar para uma só possibilidade e todo o conhecimento escolar tem de ser valorizado.

Um, dois ou três exames?

Porém, “Preferia não o fazer”, se acaso tivesse de responder em concreto a esta pergunta, adotando a repetida frase de Bartleby, no conto de Herman Melville, analisado ao nível da sua repercussão pedagógica por Gilles Deleuze ou por Giorgio Agamben.

No referido texto, o escrivão de Wall Street rejeita qualquer tipo de teste ou avaliação do seu trabalho, personificando a profanação da lei, sem a contrariar, e interiorizando a sua ação como possibilidade efetiva de algo que pode fazer através de um não-ser, que lhe permite experienciar uma possibilidade de liberdade, o que os alunos do secundário não podem adotar perante a lógica dos exames.

Responder, assim, ao número de exames nacionais que os alunos devem fazer no ensino secundário é algo que “Preferia não o fazer”, pois o que está em causa não é tanto o número, mas sobretudo o sistema de exames relacionado com o acesso ao ensino superior.

Ainda na análise que o filósofo italiano Giorgio Agamben faz da reação de Bartleby, a resposta “Preferia não o fazer” é uma crítica à educação como possibilidade genérica, ou seja, como processo de desenvolvimento das crianças e dos jovens para, através da aprendizagem, adquirirem as competências tidas como imprescindíveis à economia baseada no conhecimento, e para a qual contribui a nova teoria do capital humano.

Um dos pilares da conceção da educação como possibilidade genérica é constituído pelos resultados escolares, que reforçam a lógica do “ainda não” pertencente à sociedade adulta, acentuando que, nesse caminho de desenvolvimento, as crianças e os jovens têm de ser confrontadas com a eficiência e com a qualidade do que efetivamente aprendem.

O “ainda não” converte-se, progressivamente, no “deve ser” por intermédio da educação, com os seus períodos definidos de escolarização e com os seus marcos internos e externos de avaliação.

Pelo contrário, a educação como possibilidade efetiva — a que está fundamentada num currículo entendido como consciência de possibilidades, tal como propõe a norte-americana Janet Miller, em que muitos são os percursos que podem ser percorridos como espaços abertos e não totalmente predeterminados por resultados esperados — é um abrir de portas para novas formas de estudar e aprender, e também para novas formas de ensinar, relacionadas com uma educação humanista, inclusiva e digital.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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