ChatGPT: se o vento não se deixa agarrar, aproveitemos a força do vento

Nos tempos que vivemos, em que meias verdades são apresentadas como verdades absolutas, esta é uma oportunidade para colocarmos no centro dos nossos currículos a consulta de fontes credíveis.

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Lançado no final de 2022, o ChatGPT invadiu o nosso quotidiano e ocupou o espaço académico. Apareceu em força e não podemos dizer que se instalou sem avisar. Há muito que as universidades trabalham as questões da inteligência artificial e as suas aplicações. O que surpreendeu foi a rapidez e a dimensão que atingiu.

Coloquemos, então, os dois pés no real e façamos o exercício a que estamos habituados na academia: novo fenómeno? De que se trata? Como funciona? Que repercussões?

Sabemos que é uma ferramenta acessível, que evolui muito rapidamente e que nos dá sempre respostas, nunca confessando que não sabe. Sabemos que produz resultados, que, embora plausíveis, não são obrigatoriamente verdadeiros ou completos. Ainda (sublinhe-se o “ainda”) não nos explica, de forma cabal, como chega aos resultados que apresenta, oferecendo muitos produtos, mas pouca informação sobre os processos para os obter. Finalmente, aceitemos que o ChatGPT oferece recombinações de textos e não um pensamento original. Este é, pois, o fenómeno em presença.

Olhemos agora para dentro da academia. Temos, desde sempre, defendido a produção original e rigorosa de conhecimento. É esta nossa cultura que nos faz desconfiar de soluções rápidas, à velocidade do pressionar de uma tecla. E, no entanto, também tem sido esta postura que, curiosamente, e no campo pedagógico, nos tem afastado de uma das melhores alavancas para a aprendizagem – o erro.

A utilização desta nova ferramenta volta a banalizar o erro, o incompleto e o incerto, oferecendo-nos uma excelente oportunidade para os detetarmos, para questionar fontes, para defender opiniões sustentadas em dados, para assumir responsabilidades sobre o que afirmamos. Aqui está uma janela para a reflexão e para o pensamento crítico, e para a rejeição do simples recitar do que está “certo”. Voltamos, assim, à nossa essência, voltamos ao básico. Não será de aproveitar a oportunidade?

É verdade que se colocam questões éticas muito relevantes. O ChatGPT retrata o mundo como ele é, não como gostávamos que fosse e, por exemplo, preconceitos e xenofobia(s), porque prevalentes, são recombinados e vulgarizados à exaustão. No caso da academia, avoluma-se, por exemplo, a questão do plágio. Não desejo discutir a honestidade académica e os abusos que tem sofrido. Diria só que não começaram com o ChatGPT e acrescento que, também neste domínio, poderemos voltar a discutir estas questões, para encontrarmos regras de comportamento que nos pareçam mais adequadas. Esta discussão deverá incluir todos – estudantes, professores, investigadores, pessoal não-docente. São os nossos valores, são os pilares da nossa vida na academia. Reduzi-los a uma lista de punições não nos resolve o problema. Não será esta uma discussão urgente e, sobretudo, útil? Poderemos desperdiçá-la?

Outra oportunidade para as nossas instituições centra-se nas questões da formação sobre a ferramenta em si própria. E aqui o desconhecimento é grande. Alguns mais conhecedores, mais afoitos e curiosos já dominam como fazer, mas a maioria está aquém das necessidades. É um tema transversal que não nos obriga a separar por disciplinas, por atividade, por área científica. Não teremos aqui a oportunidade para pensar, em conjunto, uma estratégia institucional?

Não me parece que estes desafios nos vão assustar demasiado. Acabámos de sair de uma pandemia em que nos familiarizámos com aulas totalmente a distância e em que misturámos o online com o presencial. Fizemos tudo na perfeição? Todos sabemos que não. Porém, de repente, foi-nos pedido e às nossas instituições que introduzíssemos tecnologias e as consequentes mudanças nas nossas práticas pedagógicas e aqui estamos, nós e os estudantes, a assumir que não vamos voltar aos tempos do exclusivamente presencial e que continuamos a construir o novo normal.

É escusado dizer que, para conseguirmos acomodar mais esta questão nas nossas instituições, algo terá de mudar. Será necessário ter tempo para analisar quer fontes, quer a própria informação, ter tempo para discutir e formar uma opinião, ter tempo para treinar e exercitar níveis cognitivos mais complexos, para além da memória e da aplicação dos conhecimentos. Por outro lado, sei bem que o número de alunos não diminuiu, que os espaços são os mesmos, que os ambientes de aprendizagem não oferecem a riqueza de recursos educativos que vemos noutras paragens.

Tenho perfeita consciência do que é o dia-a-dia de um professor universitário com a gestão de serviço docente, de atividades de investigação, de cargos dentro da escola, de projetos de articulação com o mundo fora dos muros da academia. É uma sucessão de tarefas, muitas vezes num ritmo que, mais uma vez, não dá tempo para refletir e, sobretudo, que aumenta a insatisfação e o cansaço. Como sempre, a solução para um problema complexo não pode ser única e milagrosa. Aqui, a área científica onde me movimento poderá contribuir para se repensarem currículos, tecnologias educativas, formatos pedagógicos e de avaliação.

Nos tempos que vivemos, em que meias verdades são apresentadas como verdades absolutas, em que imprecisões são vendidas com capa de rigor e em que o falso vai passando por verdadeiro, esta é uma oportunidade para colocarmos no centro dos nossos currículos a consulta de fontes credíveis, a capacidade de análise e de reflexão, a discussão de diferentes pontos de vista. As nossas democracias precisam desesperadamente de cidadãos com estas capacidades.

Assim, como académicos, só poderemos fazer uma coisa – caracterizar o fenómeno, analisar os seus impactos e contribuir para o conhecimento e para a tomada de decisão. Sobretudo, tratemos o assunto com rigor, tal como fazemos nos nossos domínios científicos de pertença. É o que sabemos fazer, é o que fazemos bem e, sobretudo, é a nossa obrigação.

Texto produzido no âmbito do painel “ChatGPT e ferramentas de inteligência artificial: uso responsável na ciência e ensino superior”, na Universidade de Lisboa, em maio de 2023

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