Rabo de Peixe: os desgraçados agora somos nós

Rabo de Peixe, a série, Rabo de Peixe, o filme. Descubra as diferenças. Olha-se para baixo no streaming, olha-se para cima na sala de cinema.

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Rabo de Peixe, o filme
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De Rabo de Peixe não ficamos a saber nada. Aprendemos o que se conhece das cidades pelos seus aeroportos: a reprodução de um décor “internacional”. O mesmo “visual”. Até os mesmos cheiros. Rabo de Peixe, a série de Augusto Fraga que aterrou no grande aeroporto do audiovisual, a Netflix, é a contribuição nacional para a linguagem franca que domina o comércio das séries televisivas. Limpa de rugosidades, idiossincrasias e lampejos de aventura individual e, claro, de qualquer poética pessoal. É para isso que estamos a competir.

A curiosidade e o conhecimento? Só q.b..

As histórias e as pessoas? São instrumentais.

Os travellings e os drones? Foram comprados no supermercado do pronto-a-filmar, não desenham um protocolo ou uma ética de aproximação a uma história ou a uma personagem. O vazio de significados está aberto pelo consumo massificado de significantes.

O que é que acham que acontece quando se despejam centenas de quilos de cocaína numa das aldeias mais pobres da Europa? A pergunta é retórica porque a voz-off à Scorsese, temperamento “filme de gangsters” por alturas de Tudo Bons Rapazes (1990), tem evidentemente a resposta: acontece o grotesco à la Trainspotting (1996). É um passo que é dado lavando-se as mãos. Começa por simular uma operação de resgate: “Esta é a história de um rapazinho com grandes esperanças num lugar onde a esperança nunca existiu”. Vai fazendo navegar a credulidade do espectador: “Dizem que os açorianos têm o desejo ardente de correr o mundo. Bullshit. Só querem fugir à pobreza”. Finalmente, reforça os estereótipos disfarçando tudo com a aparência de uma mundivisão, uma incontinência filosofante, tipo eis a tragicomédia humana: “Os terramotos não são apenas a terra a tremer. Abanam quem somos” ou, falsamente lúcida porque particularmente hipócrita, “nestas ilhas onde o sol não brilha por muito tempo há desgraçados que já têm a sina marcada quando nascem e não há nada que Deus ou o Diabo possam fazer por eles”.

Rabo de Peixe, a série
Rabo de Peixe, o filme
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Rabo de Peixe, a série

Especialmente hipócrita porque Rabo de Peixe, a série, usa as personagens como se elas tivessem a sina marcada, precisa desses estereótipos, não havendo muito que os argumentistas, Augusto Fraga, Hugo Gonçalves, João Tordo, façam por eles, "os fodidos de Rabo de Peixe", caracterização no último episódio. Dão-lhes uma série de referências cinéfilas para a boca, para citarem nos diálogos, do Boogie Nights, de Paul Thomas Anderson (1997), aos Condenados de Shawshank, de Frank Darabont (1994) passando por Orson Welles, Parque Jurássico ou Matrix, e pedaços de música para assobiar, Brahms ou o Requiem de Fauré. Mas esses bons conhecimentos cinéfilos e melómanos em pescadores, traficantes de droga e gangsters não são uma dádiva, um acto de generosidade, não declaram o talento artístico das personagens, não as engrandecem. Exibem sobretudo o argumentista. É isto brincar aos Tarantinos?

É o mesmo tipo de intervenção artificiosa que gere as expectativas quanto às marcas do lugar. Rabo de Peixe é, fundamentalmente, uma ficção situada em terra-de-ninguém. Isto é, feita em nome do mínimo denominador comum para juntar os consumidores internacionais. Os actores, interpretando personagens de um território que está cheio de complexidades sociais, de especificidades irredutíveis, como o sotaque, foram colocados, no entanto, num espaço de neutralidade. É assim que falam, “como os actores falam”, deixando aqui e ali, nos secundários, a pontuação com os sinais da excepção. São toques de decoração: na voz-off vão sendo estrategicamente introduzidas referências à miragem americana de um arquipélago português, palavras atiradas à parede a ver se colam nas frases, bullshit, my boy, big time...

Era contra isto que nos avisava Rabo de Peixe, o documentário de Joaquim Pinto e Nuno Leonel que esta semana chega às salas de cinema investido assim de um impressionante poder de premonição. Foi isto que antecipou.

Entre 1999 e 2001, Pinto e Leonel estiveram na ilha de São Miguel, na freguesia de Rabo de Peixe, a documentar os últimos tempos de um modo artesanal de pesca. Como acontece com os autores do extraordinário E Agora? Lembra-me (2013), um filme é o registo de uma história privada, de uma descoberta do mundo, uma iniciação que persegue ligações fundas e primordiais, a experiência hipnótica, psicadélica. É, inevitavelmente, um diário pessoal, um momento da vida, o que os realizadores desejam e o que os realizadores põem em causa num determinado momento. É uma vivência, não um jogo de argumentista a dispor as peças a seu prazer, a aprimorar a eficácia industrial. É uma troca: diz-me como se pesca e eu digo-te como se filma. É mais do que um princípio teórico, as câmaras foram entregues aos pescadores.

“Pensar é andar menos depressa; na pesca artesanal cada pescador segue a sua intuição.” Isto, que é sobre a pesca e sobre uma comunidade que aparecia só nos jornais e na televisão por causa de problemas sociais, é o relato do encantamento, de Nuno e Joaquim, por Pedro, Rui, Emanuel, Artur e o resto da companha. É isso, mas é também a história do que está a acontecer há duas décadas, e por isso já (nos) aconteceu, ao espectador e às imagens.

Às tantas, diz a voz-off: parece que os filmes servem para alguma coisa, para descobertas, aproximações. Rabo de Peixe, o filme, fez-se – tendo sido filmado entre 1999 e 2001, a versão que vemos é a director’s cut remontada em 2015 – num momento​ em que Nuno Leonel e Joaquim Pinto questionavam o seu trabalho como técnicos de som em filmes de ficção. Diziam eles, dizem ainda eles se os quisermos ouvir: gravam som para filmes que são “histórias de amor, dramas, comédias em que as personagens comem e parecem não cagar”; filmes em que as personagens “vão para o trabalho, mas não as vemos trabalhar”; filmes em que as personagens, “amando-se, o sexo [neles] é simulado”.

Na série Rabo de Peixe, as personagens cagam, é verdade. No quarto episódio, a escatologia tem mesmo um momento aprimorado, quando a cocaína cortada com laxante produz efeitos. O grotesco só se equipara, no primeiro episódio, à sequência em que as personagens correm para a coca que lhes chega com as ondas do mar, “como macacos a comer amendoins”.

Não são necessariamente momentos de verdade estas caganças de argumentista. Não era da necessidade de escatologia que falavam Pinto e Leonel. Falavam do respeito pelo espaço de cada personagem, pela sua história individual, uma dimensão irrevogavelmente humana que é passível de resgate mitológico. Falavam do pudor, do cuidado a ter com as imagens que recriam as coisas e se atrevem a imaginar o futuro. Falavam do equilíbrio de um ecossistema, da reposição das suas populações... mas não é só dos chicharros, dos chernes ou das abróteas que se trata, trata-se também de equilibrar o voyeurismo decidindo não filmar ou esperando pela justiça poética de um momento, como aquele em que Nuno Leonel mergulhou e dançou com uma manta no fundo do mar e ficou com ele só para si porque se esqueceu de ligar a câmara.

Na pesca, o “progresso varreu o que era antigo” e “só ficaram as imagens a preto e branco”. Também no cinema. Diz-nos Rabo de Peixe, o filme, mostra-nos Rabo de Peixe, a série: os desgraçados, agora, somos nós, espectadores.

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