Se, há vinte anos, um produtor madeirense ou açoriano dissesse que, nas ilhas, seria possível fazer bons vinhos tranquilos, responderíamos, por questões de urbanidade, com um sorriso de Mona Lisa. Se dissesse que iria fazer grandes vinhos, talvez já respondêssemos com um sorriso bem mais trocista. Mas se em cima de tudo isso o produtor insinuasse que seria possível tratar uma vinha em modo de produção biológico, nessa altura só poderíamos mandar uma gargalhada.
Como se poderia imaginar tal cenário em ilhas rodeadas por vento cheio de sal e habituadas a receber todas as estações do ano num só dia? E, todavia, a realidade está cá para nos recordar que é feio ter preconceitos. A Justino's Madeira Wines, empresa histórica do vinho Madeira, acaba de lançar o primeiro vinho tranquilo certificado como biológico: o Fanal Verdelho 2021. Já agora, no Pico, nos Açores, existem experiências em modo bio, mas ainda sem certificação.
O mundo está cheio de histórias de vinhos resultantes de 'acidentes' que depois acabaram por correr bem (isto sempre dá uma ajuda à malta do marketing), mas no caso da Justino's a tese não vem com manhas porque a empresa já tem na adega 125 mil litros de vinho Madeira biológico (não DOP Madeirense) e prepara-se para, no próximo ano, lançar o primeiro vinho Madeira Tinta Negra Bio. Seguir-se-ão Madeiras de Verdelho, de Sercial ou Boal. Ou seja, a produção em modo biológico é uma estratégia assumida há muito pela Justino's. Não é um devaneio.
Quando, na vindima de 2021, Juan Teixeira recebeu na adega as caixas com os cachos de Verdelho que dão origem a este Fanal ficou impressionado com o bom estado sanitário das uvas. "E foi por isso que eu decidi arriscar na produção de um branco bio. Correu bem, e assim nasceu o vinho”, conta o enólogo chefe ao Terroir.
Em rigor, o enólogo (que também é director-geral da Justino's) nem assumiu grandes riscos porque se o vinho corresse mal ele sempre teria a hipótese de o fortificar para vinho Madeira. Vendo bem, no caso madeirense, o risco de trabalhar em modo biológico está mais na vinha do que na adega.
Alguns viticultores estão a reconverter vinhas na Madeira para modo biológico, processo bastante complexo em virtude das condições meteorológicas e em virtude de as pequenas parcelas de vinha poderem estar ao lado de outras que são cultivadas em modo convencional.
As uvas para o Fanal da Justino's são provenientes da Quinta das Vinhas, no Estreito da Calheta, uma propriedade privada que outrora foi campo ampelográfico do Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira, e onde Juan tem acesso a um património de largas dezenas de castas, entre elas as desconhecidas Complexa e Triunfo (tintas). O trabalho das irmãs Isabel e Catarina Welsh, da família proprietária da Quinta das Vinhas, pode ser revisitado aqui no Terroir a partir de uma reportagem de Ana Isabel Pereira.
Quem conhece a cultura da vinha numa ilha sabe que lutar com níveis de humidade relativa do ar acima dos 80 por cento é como andar num mar de ondas de cinco metros com um barco de boca aberta (não pode correr bem). E mesmo quando um determinado ciclo corre de feição entre Março e Julho – com as vinhas compostas de uvas – bastam três ou quatro de dias de Agosto ‘bem forrados’ (cheios de nevoeiro baixo) ou ventos cheios de sal para que o oídio e outras moléstias se instalem nas vinhas convencionais e sujeitas a dez ou 12 tratamentos anuais para que quase toda a produção se perca.
Imagine-se agora o que se passará em vinhas em modo biológico. “É mais ou menos certo que uma vinha em modo biológico na Madeira implica, em anos regulares, a perda de 50 por cento da produção. É muito. Mesmo que se pague mais pelas uvas (uns 40 cêntimos a mais por quilo), essa diferença dificilmente compensa. Só uma enorme paixão e respeito pelo ambiente justifica o trabalho desses viticultores. Numa ilha, a viticultura em modo biológico não é um negócio – é um perdócio”, garante Juan Teixeira.
Não é por ser biológico que este Fanal se transforma num grande vinho com a mão da equipa de enologia da Justino's, mas não se pode deixar de aplaudir de pé quem decide produzir uvas em modo biológico numa ilha. No caso, aplaudir as irmãs Isabel e Catarina Welsh. O risco está quase todo do lado delas e de outros viticultores que pensam como elas.
Nome Fanal Verdelho Bio 2021
Produtor Justino's Madeira Wines
Castas Verdelho
Região Madeira
Grau alcoólico 11 por cento
Preço (euros) 28
Pontuação 94
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Toda a gente sabe que a imagem de marca de um fortificado vinho Madeira é a acidez e que isso se deve aos solos da ilha (basta comer qualquer fruto produzido na ilha para sentir na boca esse carácter ácido). Ora, o mesmo se passa com o Fanal DOP Madeirense – a acidez é a sua cara. No aroma bastante delicado sentimos frutos de polpa branca, com algumas notas que poderiam lembrar bâtonnage feita em barrica, mas que, na realidade, não passa de um bom trabalho de borras feito em inox (o vinho não teve qualquer contacto com madeira). Na boca vinga a acidez, a mineralidade, a salinidade típica, mas tudo isso domado pelo tal trabalho das borras. Ah, cereja em cima do bolo, tem 11 por cento de álcool. Um luxo.
Nome Fanal Extra Reserva (Fajã das Contreiras)
Produtor Justino's Madeira Wines
Castas Sercial e Verdelho
Região Madeira
Grau alcoólico 19 por cento
Preço (euros) 48
Pontuação 95
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova É daqueles Madeiras que por ser menos concentrado torna-se mais fino e, ainda assim, misterioso. Notas de ervas, de cogumelos, de bosque e aquele ligeiro ranço que aparece em grandes vinhos com o tempo. Apesar de estar na categoria meio seco, às cegas diríamos que é seco, visto ter 63 gramas de açúcar por litro. E isto parece ser uma imagem de marca da Justino’s. Boca também seca e salina, com uma acidez que parece não ter fim (7,7 gramas de ácido tartárico por litro). Com peixes fumados, uma categoria.
Nome Justino’s Madeira Single Cask 2006
Produtor Justino's Madeira Wines
Castas Boal
Região Madeira
Grau alcoólico 20 por cento
Preço (euros) 60
Pontuação 96
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Assim como os escoceses têm a categoria casks strength para o whisky, os madeirenses têm o single cask para o vinho Madeira. Ou seja, este Boal de 2006 foi seleccionado de um conjunto de cascos de Boal de 650 litros com vinhos da mesma colheita porque a equipa liderada por Juan Teixeira entendeu que se destacava dos outros por questões de complexidade. É um Madeira meio seco mas que, de novo, mais parece seco. Com tons acobreados, é muito elegante e destaca-se pelas notas de iodo, frutos secos, frutos exóticos e especiarias (caril). Não fácil parar de o beber porque está sempre a revelar aromas e sabores.
Nome Colombo Caracol-Listrão 2021
Produtor Justino's Madeira Wines
Castas Caracol e Listrão
Região Madeira (Porto Santo)
Grau alcoólico 11,5 por cento
Preço (euros) 21
Pontuação 89
Autor Pedro Garcias
Notas de prova Uma das novidades deste ano, com origem na ilha do Porto Santo. Um branco tranquilo produzida pela Justino's Madeira Wines, do mesmo proprietário da Gran Cruz, no Douro. Junta as duas variedades emblemáticas da ilha: Caracol (julga-se que a variedade foi trazida na década de 30 do século passado da África do Sul por um emigrante porto-santense de apelido Caracol) e Listrão, a Malvasia-Rei do Douro. Duas castas sem grande valor enológico reconhecido, mas que no clima e nos solos arenosos e calcários de Porto Santo podem gerar vinhos interessantes, pela expressão salina que ganham. Este Colombo tem um aroma gracioso, que remete para os frutos tropicais, e na boca destaca-se, sobretudo, pela sua boa frescura e ligeira sensação salina. Ao contrário de alguns brancos da vizinha Madeira, a acidez é mais civilizada, pela natureza dos solos e também porque as uvas amadurecem melhor. Este branco tem apenas 11,5% de álcool e na boca até parece ser mais alcoólico.