“A escola lida mal com a subjectividade”
Segundo Ricardo Azevedo, um bom livro para crianças deve ter uma linguagem popular e tratar de assuntos da vida concreta. A escola não pode querer que os alunos os interpretem de forma igual.
Ricardo Azevedo, escritor, ilustrador, compositor e investigador de São Paulo, é autor de muitos livros para crianças e jovens e ganhou várias vezes o Prémio Jabuti, muito importante no Brasil. Esteve em Pombal por estes dias, na XX Edição dos Caminhos de Leitura, e não gosta da “confusão” entre livros didácticos e de literatura. Dos primeiros, espera-se que todos os interpretem da mesma maneira. “A literatura é outra coisa”, diz.
Afirma que a escola tem um propósito utilitário, pelo que “lida mal com a subjectividade”, mas não se conclua que desvaloriza os vários tipos de conhecimento, sejam as ciências exactas ou as outras. Há é que perceber que têm objectivos, métodos e resultados diferentes. Além disso, desactualizam-se. O essencial das questões humanas não.
Acredita que a linguagem popular é a melhor para se chegar às crianças e aos jovens, pois defende que foi a partir dela, nos contos tradicionais e primordiais, que nasceu a literatura. Quando fala em literatura, refere-se a “ficção narrativa e poesia”. Formou-se em Artes Visuais e invoca sempre o poder das imagens. “Elas ampliam o que está escrito. Vão além da narrativa.”
O PÚBLICO falou com o autor de Abençoado e Danado Samba – Um estudo sobre o discurso popular (Editora da Universidade de São Paulo), Prémio Jabuti em Teoria e Crítica Literária 2014, e de Trago na Boca a Memória do Meu Fim (editora Ática), distinguido em 2019 com o prémio anual da Associação dos Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil.
Assistiu também à sua conferência Literatura de Ficção, Escola e Utopia e participou na oficina Raízes da Literatura, Cultura Popular e Literatura para Crianças e Jovens, nos Caminhos de Leitura. Tem 73 anos e trabalha há 43 com livros. Gosta. Mas não lhe falem em inspiração. “O trabalho nasce do trabalho.” Usa recorrentemente no final das frases uma expressão bem portuguesa, ainda que em desuso por cá: “Etc. e tal.”
Ler porquê e para quê?
Ler é um contacto com o outro. Quando se lê, encontra-se um outro ponto de vista. No caso da literatura de ficção e de poesia, se ler um livro de 1500 ou de 1600, D. Quixote, por exemplo, encontra coisas importantes para si hoje, em 2023. Essa riqueza que a literatura e poesia têm de manter certas questões humanas em volta é uma razão para lermos e muito.
Não imagina a sua vida sem livros?
Nasci no meio de livros. O meu pai era professor numa universidade. Tive a sorte de nascer numa casa com muitos livros. Os meus pais eram leitores, mas não indicavam livros. Eu e os meus irmãos aprendemos a ler assim. Eles escolhiam os seus livros e nós os nossos. E íamos lendo.
Existe uma literatura “para” a infância, “para” a juventude? Se sim, em que difere da outra?
Isso para mim é uma coisa mil vezes mais ligada à indústria cultural, a mercados, para poder escoar produtos para determinados públicos. Como autor, procuro não fazer diferenças entre as idades, mas sim encontrar as semelhanças entre todos nós. Todos nós sonhamos, todos nós precisamos de conforto, temos medo. Nós todos, de todas as idades. Apaixonamo-nos e vamos morrer, sem excepção. Portanto, a literatura que me interessa como autor é a que trata desses assuntos, que eu digo que são “assuntos de que ninguém sabe”. Ninguém pode ensiná-los, são subjectivos e da vida concreta. A divisão por idades é muito mais ligada aos livros didácticos, com idades específicas para cada aprendizagem curricular, de Geografia ou de Língua Portuguesa para o 1.º ou 2.º ano, etc. e tal. Agora, a literatura é outra coisa.
Mas espera-se que uma literatura para crianças seja acessível. Não pode ser demasiado abstracta, não pode ser muito complexa e deve ter uma linguagem compreensível. Você pega nos contos populares João e Maria, que são abandonados na floresta, ou na história da Branca de Neve e vê que são para toda a gente. São histórias malévolas, mas o mal existe. A criança é iniciada no mal, digamos assim, de uma forma ficcional, através dos contos. Isso é uma das razões da literatura, compartilharmos os nossos medos e as nossas dúvidas.
Afinal, o que é um bom livro para crianças?
É um livro que tem uma linguagem popular, no sentido de que seja absolutamente compreensível, e que trata de assuntos subjectivos da vida concreta. É isso.
Parece-lhe que a escola tende a “matar” a leitura de prazer, a leitura de fruição?
Eu tenho essa sensação. Porque a escola é um ambiente utilitário. Você entra na escola para aprender isto e aquilo. Quando pega num livro de literatura, e estou a falar de ficção ou de poesia, não tem sentido no final alguém perguntar que lição me deu este livro. Cada um terá a sua. É uma leitura subjectiva para um livro subjectivo.
Parece-me que a escola lida mal com a subjectividade. Ela quer ensinar Matemática, Ciências, Português, etc. e tal. Quando chega à literatura (e não é sempre, fui a escolas em que os professores sabiam o que é a literatura, o que é a arte), é muito comum a pessoa transformar o livro de ficção numa obra didáctica e esperar que os 30 alunos da turma tenham a mesma interpretação da obra. Isso é um erro.
Num livro de Matemática, claro que têm todos de aprender e apreender a mesma coisa. Esse conhecimento oficial é importantíssimo, mas é datado. Daqui a uns anos, está ultrapassado. Pensemos na Geografia e na Rússia e na Ucrânia. Daqui a dez anos, muito provavelmente o mapa será outro. As ciências vão-se actualizando, ao passo que a literatura trata da vida, está sempre actualizada. Nós continuamos a apaixonar-nos, continuamos a gostar de conforto, detestamos ser humilhados. Continuamos a ser humanos, independentemente de épocas. Esses são os assuntos básicos da poesia e da ficção. Não sei se se a inteligência artificial vencer e a humanidade acabar, será diferente. Para já, evitemos a burrice natural.
À boleia da burrice… qual a sua opinião sobre os “leitores de sensibilidade”? Aqueles que reescrevem, depuram e expurgam (de livros já publicados) expressões potencialmente ofensivas à luz de critérios actuais.
No Brasil, chamamos a isso “politicamente correcto”. Não sei responder direito. Parece-me uma segregação ao contrário, um cinismo de não aceitar a vida como ela é. Talvez num livro didáctico faça sentido discutir na classe [aula] o bullying, por exemplo, ou o racismo. Faz todo o sentido, é lógico. Mas a literatura tem de ter uma flexibilidade maior, porque é um retrato da vida como ela é. Senão, fica complicado. No Brasil, houve uma divisão sobre o grande autor Monteiro Lobato.
Foi acusado de ser racista.
Sim. Ele é um grande autor nosso. É uma óptima oportunidade de o ler. O professor, na hora em que “aparece” o racismo, pode discuti-lo na classe. E se houver um negro ali, o seu depoimento de como é ruim ser segregado, como é ruim ser diminuído pela cor, as pessoas vão até se emocionar. Esses assuntos têm de ser discutidos. Se são apagados da literatura, vão continuar a existir sempre. As pessoas vão deixar de discutir e de ter opinião.
E quanto à literatura militante, digamos assim?
Incomoda-me a literatura de causas sociais. Ela é boa literatura, é um bom livro? Ou só é importante porque está engajada [vinculada] a uma luta social? Isso está errado. Uma obra literária tem de ter uma óptima qualidade. O seu fundo ideológico é importante, mas é só o fundo. A sua razão de ser não pode ser o fundo ideológico, senão, torna-se um catecismo. Se quer defender alguma causa, escreva um livro a expor a sua tese, ok? A literatura é outra coisa, não é propaganda ideológica. Isso seria a morte da literatura, da poesia.
Falemos da linguagem popular, que muito valoriza, mas que normalmente é conotada, tanto em Portugal como no Brasil, com pobres, ignorantes, analfabetos, iletrados, iliteratos.
Temos muito a aprender com o povo. A linguagem popular é aquela que chega a toda a gente e de qualquer idade. Não é a linguagem dos pobres. Vocês têm por exemplo a recolha de contos da Ana de Castro Osório. Como autora, é diferente, mais moralista, elitista, datada, etc. e tal. É da época, claro. Agora, como colectora, aqueles contos estão vivos até hoje. São óptimas histórias, são atemporais de certa maneira: Os Três Vestidos da Princesa, caramba! É espectacular. Encontrei uma versão brasileira incrível, que introduz o Diabo, ausente do conto em Portugal. Trata de um pai que quer casar com a filha, depois de a mulher/mãe morrer. Toda a gente entende aquela linguagem.
Sendo escritor e ilustrador, o que nasce primeiro, o texto, a ilustração ou tudo em simultâneo?
Eu faço um plano. Cada livro tem o seu jeito. Mas o plano vai-se modificando à medida que vou escrevendo. Aquela velha história de o caminho se fazer ao caminhar. É exactamente assim que eu trabalho. Muitas vezes, surge um personagem que não fazia parte do plano. Ele surge, toma as rédeas e aquele cara [indivíduo] encaminha, modifica a história. Também nunca sei qual será o desfecho. Eu vou indo, aos trancos e barrancos [desajeitadamente], e de repente chego ao fim. Com a ilustração é a mesma coisa, de certa maneira.
Faz um esboço da sequência de ilustrações, um storyboard?
Eu faço vários rascunhos até determinar a imagem. O processo é diferente do texto, é lógico. Esses rascunhos são caóticos. Eu tenho uma ideia e faço um desenho. De repente, faço um erro e a partir desse erro faço outra coisa. Tudo vai mudando. Eu gosto disso, porque se contrapõe à velha e boa ideia da inspiração. Converso com leitores, crianças e adultos, que acham que nós os escritores e ilustradores vamos andando e de repente há um clique na nossa cabeça e surge uma ideia pronta. Isso é uma coisa desumana [não humana]. Não é assim. Pelo menos para mim não é.
Como alguém disse: não é inspiração, é transpiração. Ou seja, trabalho.
Sim, é trabalho. E o trabalho sai do trabalho. Do erro também.
Falando agora da parte plástica, visual e do processo criativo. Como funciona?
Eu vim de uma tradição de escritores, mas acabei por estudar artes. Para mim, foi uma coisa maravilhosa entrar na escola de Artes Plásticas. São inúmeras as analogias entre as artes plásticas e o escritor. Eu valorizo muito as imagens, sei o poder que as imagens têm. Publiquei o meu primeiro livro em 1980 e logo ali me interessei pela metáfora visual. Ainda hoje é assim. Gosto de fazer desenhos que não digam exactamente o que está ali, mas que ampliem o que está escrito, dilatem o universo de significação.
Quando resolvi fazer uma colectânea de versões minhas de contos populares (1982), achei que não podia usar a linguagem dos meus livros autorais. Não fui eu que os criei, foram inventados pelo povo. Então, fiz uma pesquisa sobre iconografia popular, que é muito baseada na xilogravura (livros de cordel, por exemplo) ou em bonecos de cerâmica. Esses materiais acabaram por influenciar os meus desenhos, assim como as cores e várias outras coisas. Então, eu tenho duas linguagens: uma linguagem minha, como autor, como criador, e outra que eu uso quando trabalho com matéria-prima popular. É uma linguagem claramente marcada pelos desenhos tradicionais, pela xilogravura e etc. e tal.
E quais são as técnicas que usa numa e noutra vertente?
Na vertente autoral, uso pincéis, lápis, papel e aguarela. Quando faço trabalhos de origem popular, uso o nanquim [tinta-da-china], porque eu imito a xilogravura. Quando há cores, são aplicadas depois. Eu faço em branco e preto e indico depois as cores graficamente e a editora faz. Não trabalho com tecnologia…
Para finalizar, o que é que não perguntei que deveria ter perguntado?
Eu é que me pergunto: sendo escritor e desenhista, contribuo para um mundo onde haja mais justiça, mais democracia; contribuo para um mundo mais civilizado? Ou contribuo para que o meu trabalho mantenha esse fosso separando as pessoas e a segregação, o medo e a exploração do homem pelo homem, etc. e tal? Essa é uma questão fundamental para mim. Estou fazendo um trabalho que contribui para melhorar a civilização ou para manter a civilização desigual como temos agora? Isso para mim e básico. Os demasiado elitistas tendem a manter o statuo quo. Elegantemente…