Bienal de Fotografia do Porto
Com que sonham as crianças do Bairro do Cerco?
A convite da Bienal de Fotografia do Porto, o artista visual Uwa Iduozee passou seis semanas no Bairro do Cerco, no Porto, e trouxe de lá o retrato das crianças e dos seus sonhos.
Ao longo de seis semanas, o artista visual Uwa Iduozee mergulhou no quotidiano do bairro do Cerco, na freguesia de Campanhã, Porto. Entre Outubro e Novembro de 2022, no contexto de uma residência artística, o fotógrafo e videógrafo de nacionalidades nigeriana e finlandesa revelou ao P3 ter tido "uma experiência fantástica" junto dos moradores do bairro e das crianças e jovens que participam nas actividades desenvolvidas pelo projecto Cercar-te, que têm como objectivo "o combate à exclusão social" e o "reforço da igualdade de oportunidades", pode ler-se no site do projecto. "Todas as pessoas que conheci foram extremamente calorosas e acolhedoras, abriram-me as suas casas e as suas vidas de uma forma pela qual me sinto muito grato", contou.
A ligação com o projecto Cercar-te foi essencial na sua integração, recordou. "Eles ajudaram-me a orientar-me no bairro. O director Nuno Ferreira e o resto do staff foram extremamente prestáveis ao apresentarem-me aos miúdos e à comunidade do Cerco, o que tornou muito mais simples o estabelecimento das relações de confiança necessárias para eu poder desenvolver o projecto." Garantiu: "seria mesmo impossível sem eles" obter o mesmo resultado.
Durante as seis semanas passou a ser normal para os moradores "verem um tipo novo a vaguear pelo bairro". "E foi uma sensação óptima quando as pessoas começaram a dizer-me 'olá' nas ruas, como se fosse apenas outra cara conhecida do bairro." A maior barreira foi linguística, apontou. "Eu não falo português e muitas das pessoas que conheci durante a minha estadia não falavam inglês; por esse motivo, conhecer pessoas novas, apresentar-me ou comunicar com elas foi sempre um processo lento e desafiante."
Utilizou as poucas frases que aprendeu em português com muita frequência, mas também utilizou o Google Tradutor e muita linguagem não-verbal. "Muito ficou por dizer entre nós", recordou. "Mas ainda assim, fiquei muito impressionado com o esforço a que os miúdos estiveram dispostos para colocar de parte a sua frustração e tentar manter uma conversa significante — muito mais do que eu acharia possível quando cheguei."
Nas primeiras semanas de estadia, Uwa Iduozee não fotografou. "Quis estabelecer uma relação de confiança antes de colocar uma câmara entre nós, que é algo que muda bastante a natureza das interacções." Só quando sentiu que tanto pais como crianças se sentiam seguros na sua presença é que começou a disparar. O projecto fotográfico que surgiu da interacção entre Uwa e as crianças do bairro do Cerco tem o título Ainda não, mas gosto de pintar, que se encontra em exposição na estação de metro de São Bento ao abrigo da Bienal de Fotografia do Porto e aborda, segundo a sinopse que acompanha a exposição, "as intersecções entre sonhos, imaginação e comunidade no processo de crescimento dos seus jovens, desconstruindo questões de auto-percepção, contrariando o sentido de segregação e revelando o potencial transformador da emancipação juvenil". A exposição que se encontra patente até dia 2 de Julho, com a curadoria dos directores artísticos da bienal Jayne Dyer, Virgílio Ferreira, é composta por "retratos intimistas" de crianças do bairro.
"Uma coisa que me disseram desde muito cedo acerca dos miúdos do Cerco foi que eles não tinham sonhos e que eram forçados a crescer muito mais depressa do que os seus pares devido à sua circunstância", observou Uwa. "Ao mesmo tempo que é inegável que o bairro é económica e socialmente desfavorecido, e que existem consequências que advêm desse facto, isso também é resultado da mensagem que recebe do mundo exterior acerca de si próprio."
O artista ficou surpreendido pela quantidade de portuenses que conheceu que tinham uma opinião negativa acerca do bairro e com os estereótipos infundados e pejorativos que utilizavam ao referir-se a ele. "No local percebi quão unidimensional era a história que me contavam." Apercebeu-se também que essa narrativa "afecta, inevitavelmente, a auto-percepção dos miúdos do Cerco". "Quando a sociedade nos diz que somos 'menos que', que não somos bem-vindos ou que estamos em falta, isso condiciona e limita a forma como nos vemos ou as oportunidades que vamos ter disponíveis."
Essa imagem externa negativa contribui, ao mesmo tempo, para que as crianças do Cerco se sintam muito ligadas ao bairro e sintam orgulho de viver lá. "Ouvi muitas vezes pessoas do Cerco a dizerem que não sentiam fazer parte da cidade, que se sentem como se estivessem presas no bairro, o que é compreensível se tivermos em consideração o preconceito que existe relativamente aos moradores e quão parco é o esforço feito pela cidade no sentido de diminuir essa distância." Assim, o sentido de união sai fortalecido.
"Impressionou-me muito o forte sentido de comunidade e a sensação de que as pessoas estavam a tomar conta umas das outras, mesmo dispondo de poucos recursos", recordou. "Muitas pessoas vivem ali há décadas e sentem-se muito próximas e protectoras do bairro. Toda a gente se conhece e todos partilham uma certa responsabilidade e amor não apenas pelas pessoas de lá, mas também pelo bairro em si."
À primeira vista, contou, o conjunto habitacional parecia carecer de algumas infra-estruturas de apoio. "Mas quando comecei a conhecer melhor o bairro, percebi que havia pequenas lojas, cafés, bares e espaços comunitários que não eram propriamente visíveis do exterior, se não se soubesse exactamente onde procurar." Estavam no interior dos edifícios, descreveu, e eram geridos e frequentados pelos moradores. "É uma espécie de mentalidade 'feito por nós para nós' que mostra que estes espaços cresceram de forma orgânica para suprir as necessidades das pessoas. O Cerco é um microcosmo onde as pessoas encontraram formas de fazer tudo funcionar apesar da falta de recursos."
Para Uwa, Cerco não podia ser um nome mais simbólico para o bairro. "Contém a ideia de espírito comunitário e de território separado do ambiente circundante", discorreu. O Cerco está separado do Porto também do ponto de vista da distribuição do ganho económico que advém da indústria do turismo. "A maioria dos turistas não vai ao Cerco durante a sua estadia no Porto. Assim, o investimento e as oportunidades que surgem com essa indústria nunca estão acessíveis às pessoas do Cerco", que sofrem com o aumento do curso de vida sem verem o outro lado, o positivo, da moeda.
Com que sonham as crianças do bairro do Cerco, afinal? De forma subjectiva, é isso que as imagens de Uwa tentam transmitir.