4.0
A diferença entre a Uber e a Binance
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
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Lembra-se de quando a discussão em torno da Uber era sobre o próprio direito da empresa a existir?
Os serviços de transporte através de uma aplicação entranharam-se de tal forma no quotidiano que praticamente esquecemos os tempos em que os taxistas vinha lembrar (e com a justiça a dar-lhes razão) que a Uber funcionava à margem da lei e de forma desregulada; eram os tempos em que as autoridades multavam em milhares de euros os motoristas que trabalhavam com a plataforma.
Em Portugal, o enquadramento legal das plataformas de transporte ainda não fez cinco anos. Mas, quando entrou em vigor, em Novembro de 2018, o assunto já estava quase pacificado. A inovação impôs-se, a sociedade aceitou, a lei foi atrás, hoje não se pensa no assunto, pelo menos não nestes termos (a questão da ausência de vínculo laboral continua a ocupar legisladores). Isto aconteceu cá e noutras partes do mundo.
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Esta é para os que se metem em tudo (até em avarias)
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As empresas de criptomoedas atravessam hoje o momento que alguns entusiastas esperavam que fosse o momento Uber: o ponto de viragem em que reguladores e legisladores viriam dissipar as dúvidas legais, legitimar e dar mais alcance ao que quer que sejam afinal as criptomoedas. Ainda não há muito tempo, muitas empresas financeiras tradicionais estavam a testar as águas, ainda que com cautela.
Porém, o que se está agora a passar não tem nada a ver com o que aconteceu há uns anos com as plataformas de transporte.
Depois da queda da FTX (um caso que tudo indica será de fraude pura e simples) é a vez de a Binance estar a braços com as autoridades dos EUA.
Em termos de dimensão, a Binance é uma espécie de Uber do sector. É a maior plataforma mundial para trocar "moedas" umas pelas outras e por euros ou dólares. Sempre foi uma empresa de práticas duvidosas: para começar, deixou de ter uma sede definida (inicialmente, era na China) e o CEO, Changpeng Zhao, afirmou em tempos que esta era uma empresa "descentralizada"; é o tipo de conceito que tende a cair melhor nos fóruns dos utilizadores da plataforma do que nos escritórios de autoridades reguladoras.
Ora, a SEC, que regula os mercados financeiros nos EUA, apresentou na semana passada um processo contra a Binance. Não se trata de questões relacionadas com cinzentismos regulatórios. Não é o tipo de processo cuja interpretação é apenas "Ninguém dizia claramente como deviam estas plataformas operar, e agora o regulador vem dizer que plataformas como a Binance estão ilegais". É verdade que esta é uma conclusão a tirar dos documentos. Mas, além disso, a acusação contra a Binance lista ilegalidades de outra natureza, algumas das quais semelhantes às da FTX. A empresa, por exemplo, é acusada de manipular os preços das criptomoedas na plataforma destinada a servir os clientes americanos, inflacionando os valores. Também é acusada de transferir o dinheiro dos investidores para outras entidades; num dos casos, diz a SEC, alguns desses milhões foram usados para comprar um iate.
O CEO da Binance negou as acusações. E, noutras geografias, a plataforma tem tido acolhimentos diferentes. Em França e Itália, por exemplo, recebeu aprovação regulatória há cerca de um ano.
A SEC também apresentou um processo contra uma outra plataforma, a Coinbase. Há diferenças entre as duas: a Coinbase tem sede nos EUA e é uma empresa cotada no Nasdaq (desvalorizou 85% desde que entrou em bolsa, em 2021). As contas da Coinbase são revistas por uma das grandes auditoras mundiais. Está acusada de não ter cumprido os requisitos legais para ser aquilo que pretende ser; não está acusada de desviar dinheiro dos clientes.
Há ainda uma outra distinção: a Coinbase argumenta que está a cumprir a lei; a Binance tinha concluído há muito que não estava. O processo da SEC contém uma frase que correu quase todas as notícias sobre o tema: em 2018, um executivo terá afirmado: "We are operating as a fking [sic] unlicensed securities exchange in the USA bro" (dispensemos a tradução). A frase faz lembrar uma outra, precisamente de um antigo director da Uber: "We’re just fucking illegal".
Não são só as eventuais fraudes que impedem o sector de cripto de ter o acolhimento legal que permitiria uma maior implantação no sistema financeiro. A questão é que, ao contrário de empresas como a Uber, estas plataformas de cripto não vieram solucionar nenhum problema, nem transformar para melhor a vida de ninguém, excepto daqueles que ganharam dinheiro especulativamente (e, neste ecossistema, os ganhos de uns são inevitavelmente as perdas de outros).
O exemplo da Uber é perigoso: a empresa demonstrou que ignorar a lei e ver o que acontece a seguir pode funcionar. Mas há requisitos mínimos para isso. Não desviar dinheiro dos clientes é um deles. Criar um serviço que faça sentido na economia real é outro.