Acolhimento familiar: o alento e o desalento de se acolher num sistema partido
Sensibilizemos a população para o acolhimento familiar, mas sensibilizemos também a tutela, os tribunais e juízes, e todo o sistema de proteção de menores.
Em janeiro de 2015, após todo um processo de seleção em 2014, incluindo formação específica e o integrar da bolsa de famílias aptas para acolhimento familiar de crianças e jovens em perigo, recebi o telefonema: “Precisamos de falar consigo”, foi-me dito, “Consegue vir até cá?” Lá fui à minha entidade de enquadramento. Foi-me apresentado o caso da B. Chegou à (agora) nossa casa no dia 12 de junho, após meio ano de visitas de fim de semana. Veio para ficar, num acolhimento familiar de longa duração. Pensei: o sistema funciona. Há uma necessidade, há uma família, há um perfil, há um acolhimento. Família de acolhimento, em família de acolhimento, chegaremos lá. Estava motivada!
Seguiram-se anos de grande agitação, de inúmeros desafios, mas também de muitas recompensas. A B cresceu, saiu a nova lei do acolhimento familiar, e a sua portaria, renovaram-se motivações. A minha formação contínua enquanto família de acolhimento foi sendo feita sem falha ou falta, e a devida requalificação bianual honrada. O único ponto negro: os números. Um Portugal em que 97% das crianças retiradas às suas famílias de origem, por estarem em situações de risco/perigo, continuavam a ser direcionadas para acolhimento residencial em vez de familiar como a lei indica que deve ser. Mas foi-se esperançando, isto vai mudar ao certo!
Em 2020, decidimos que estávamos prontas (eu e a B) para eu voltar à bolsa de famílias de acolhimento, com algumas condicionantes particulares à nossa unidade familiar (no nosso caso a idade e ser menina). Continuamos, três anos depois, de colo vazio. A cama está pronta, o espaço no roupeiro alocado, o coração disposto, mas ninguém chegou. Se calhar não há crianças com mais e 4 anos com necessidade (temporária) de uma família? Assim fosse. Mas, não o é. Apenas não chegam às famílias de acolhimento. Ficam algures por uma instituição, porque o sistema assim o prefere. Mesmo depois da seleção, do treino, das visitas domiciliárias, por técnicos da segurança social e da entidade de enquadramento, não se pode confiar nas famílias portuguesas para serem famílias, dizem-nos.
Perguntamo-nos: como é possível? Afinal é mesmo preciso mais famílias de acolhimento? Será mesmo isso que está a impedir haver mais crianças em acolhimento familiar? Ou, afinal, como país, fingiremos que sim, que queremos mudar os números, para parecer bem, num sistema que não faz nada de concreto e não se humaniza? É meta das "Bases para a Qualificação do Sistema de Acolhimento de Crianças e Jovens" reduzir-se, até 2030, para 1200 crianças (ao inverso de cerca de 6300) as crianças em acolhimento residencial. Gostaria que me explicassem como.
Sim, sensibilizemos a população para o acolhimento familiar (claro que sim, que precisamos urgentemente de mais famílias de acolhimento por todo o Portugal), mas sensibilizemos também a tutela, os tribunais e juízes, e todo o sistema de proteção de menores, para o privilegiarem. Deveria haver consequências, uma accountability ou “prestar de contas”, público, pela inumanidade de um sistema partido. Ou os juízes portugueses têm um conhecimento de tal modo superior ao resto da Europa (e do mundo ocidental) que estão, largamente, a ser particularmente elucidados para dizer não ao acolhimento familiar, ou têm de se educar sobre o mesmo. Não falta, certamente, literatura sobre as vantagens do acolhimento familiar. Também não faltam dados históricos em como a institucionalização de crianças e jovens tem lugar apenas em situações muito específicas. Falta é conhecimento e vontade de se saber. Falta sensibilidade, vontade, e confiança nas famílias portuguesas.
Mas, continuemos a campanha de sensibilização por outros fóruns. Há famílias de acolhimento que não conseguem colocar a criança a seu cargo na creche (“extravagas para crianças em perigo? nunca ouvimos falar”, dizem-lhes). Há juntas de freguesia que se recusam a passar declarações que uma criança ou jovem em acolhimento faz parte do agregado familiar, declarações estas necessárias para matrículas escolares. Há USF/CS que se recusam a adicionar a criança ou jovem em perigo ao agregado da família de acolhimento, ficando estes sem médico/a de família. Há balcões do cidadão que não permitem famílias de acolhimento renovarem os cartões de cidadão dos menores que acolhem. Estas são as histórias, e os desalentos, de se ser família de acolhimento num sistema partido.
Não que a tutela as oiça, porque ninguém fala diretamente com as famílias de acolhimento existentes, a menos que seja para colocar num relatório aquilo em que estas falharam. O que é afinal o que muitos aparentam querer acontecer para provarem que estão certos. Claro que não admitindo que foram os próprios que conduziram ao falhar, quando falha, ou ao dissuadir de muitas famílias de se tornarem famílias de acolhimento quando ouvem todas estas histórias.
Como é que perante isto exigimos mais da população? Como é que podemos pedir “acolham, acolham”? É, honestamente, uma vergonha coletiva.
Falei-vos de alentos, e é assim que quero terminar, porque há força em números quando nos tornarmos muitos no acolher. Sabem o vosso filho, sobrinho, neto, afilhado, priminho, que veem crescer, aprender, formar laços, vínculos, questionar o mundo, criar rotinas, brincar, sorrir, abraçar, protegido, seguro, com cuidado individualizado? Acolher é fomentar, dar espaço, para isto tudo, e muito mais. É amar aquela criança, dar-lhe, devolver-lhe, toda a sua potencialidade, bases para sonhar, alcançar, crescer, ser o seu todo. É providenciar um momento para a sua família de origem se reorganizar até o momento do regresso da criança à sua casa (e/ou adoção ou autonomia, se for o caso). É encher o coração e mil e um momentos de júbilo. Atou o sapato, resolveu a conta de dividir, fez a cama, brincou, tomou banho sozinho, escreveu o nome, sossegou na sala de aula, foi fazer um recado sozinho, foi convidado para uma festa de anos! São mil e uma vitórias. É dar de nós e receber muito mais de volta. É o melhor investimento que se pode fazer. É dizer a uma criança em perigo: tu importas e estamos todos aqui para ti.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990