Os luxos que permitem todos os outros

Luxo é, não tenho dúvidas, acordar com saúde, mas também desfrutar de saúde o dia fora, de barriga composta e sem apoquentações de maior.

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No exato momento em que recebi o email da Bárbara Wong a pedir-me uma crónica sobre luxo, veio-me à lembrança a minha resposta quando, há meia dúzia de anos, me solicitaram opinião sobre o mesmo tema: “Luxo é acordar com saúde.”

Hoje, subscrevo a opinião de então, mas sinto que está incompleta. Luxo é, não tenho dúvidas, acordar com saúde, mas também desfrutar de saúde o dia fora, de barriga composta e sem apoquentações de maior, fazendo o que bem entendemos com o nosso tempo, e deitarmo-nos com saúde.

Quantos anos tens, João? Isso é conversa de velho!”, dirão, no mínimo, meia dúzia dos meus amigos ao lerem esta atualizada definição de luxo. Seja. Não só não mudo uma vírgula ao que escrevi, como estou disposto a gastar horas do meu tempo, o segundo maior dos luxos, a argumentar sobre isso. E começo já com uma premissa sob a forma de pergunta: não é a saúde o luxo que permite apreciar todos os outros?

Prossigo com uma partilha: esta manhã, enquanto circulava num centro comercial, vi um senhor dos seus 75 anos atrapalhar-se na saída das escadas rolantes — essa marcante alegoria da preguiça coletiva — e cair desamparado em câmara lenta aos meus pés. Ainda estiquei os braços para o amparar, mas a sua cabeça passou a centímetros da minha mão, embatendo com estrondo no chão.

O som do impacto pairou no ar alguns segundos e todos em redor sustiveram a respiração. Segurei a cabeça do senhor José (uma senhora que o acompanhava gritou-lhe o nome durante a queda) e, com a ajuda de outras duas pessoas, sentei-o numa cadeira que alguém foi a correr buscar. Deixem-me ver, sou enfermeiro”, ouviu-se. Afastei-me e fiquei a observar o enfermeiro aplicar os primeiros socorros. Um par de minutos depois, o senhor José já respondia a perguntas e eu segui o meu caminho escadas rolantes abaixo. Ao aproximar-me do momento em que a esteira é engolida pelo chão, os diferentes instantes da queda do senhor José desfilaram em câmara lenta numa tela à frente dos meus olhos. Revi-os vezes sem conta à procura da exata fração de segundo em que deveria ter sido mais lesto a deitar a mão à sua cabeça para a salvar do chão.

Uma mera ida ao centro comercial para (invento) comprar uma camisa ou uns sapatos. Eu vi o senhor José erguer o pé para sair das escadas rolantes segundos antes de tombar. Pareceu-me bem de saúde. Exibia até aquele leve sorriso no rosto de quem está satisfeito com a vida. E, de repente, catrapus, um buraco na testa. Não comprou camisa ou sapatos. Voltou para casa com uma feia ferida na testa. Saúde, o luxo que possibilita todos os outros, incluindo poder cuidar dos outros, como fizemos com o senhor José, que usufruiu do luxo de ter quem lhe valesse em momento de aflição.

Meti-me no carro e dirigi-me para casa. (Casa, carro e combustível, luxos…) À minha frente, circulavam três automóveis. Ao longe, junto à passadeira, observei uma senhora com a idade do senhor José, mas mais curvada e carrancuda. Em cada mão, levava um saco cheio de compras. Pesados, presumo. O primeiro carro não parou. O segundo também não. Nem o terceiro. Eu parei. Esqueçam, não é para me armar. (Quase reprovei no exame de condução por não parar numa passadeira.) A senhora passou lentamente. Os sacos eram mesmo pesados. Esperei, não tinha pressa. Tempo, o segundo maior dos luxos. Respeito, o terceiro. Não necessariamente por esta ordem.

Antes de chegar a casa, parei no supermercado. Escolhi um cacho de bananas da Madeira e coloquei-o no carrinho. Três euros o quilo. Por falar em luxo…

Entrei em casa. A minha pequena filha correu para a porta, abraçou-me e beijou-me. (Para lá de luxo!) Vamos ao parque?”, perguntou. Vamos”, respondi. Tenho tempo. (…)

No parque, a Estrelinha brincou com a Maria, uma menina ucraniana com um ano e sete meses. Os pais mal falam português, mas são muito simpáticos, estão sempre a sorrir. Desfrutam da paz. Que luxo.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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