Por esse rio abaixo, até ao mar
Barqueiros que remam até ao infinito, sempre, sempre — mas sem se cansarem. Um livro que convida a escutar o silêncio.
Conta a autora, Emília Ferreira, que foi um caderno chinês que a conduziu a este texto. “A capa desse caderno era de seda bordada. Nela podiam ver-se árvores, flores e um curso de água, no qual navegavam pequenas embarcações. Os barqueiros que se viam nessas embarcações fundiam-se com a paisagem. À medida que eu mexia no caderno, sob diversos ângulos de luz, a seda bordada parecia mudar de tom, como se anoitecesse ou amanhecesse. Os barqueiros pareciam navegar no silêncio, num mundo só deles, no seio da floresta.”
O leitor consegue experimentar essa sensação não só pela prosa poética, mas também através das ilustrações de Ivone Ralha, com barqueiros discretos e quase invisíveis numa paisagem tropical que se transmuta pela luz.
O texto recebeu o Prémio Branquinho da Fonseca Conto Fantástico há 17 anos, facto que levou Ana Sousa Dias a dizer, na apresentação de Os Barqueiros do Rio Cheio na quinta-feira, na livraria Snob, em Lisboa: “É como se o livro tivesse estado à espera das cores da Ivone, deixou de ser um texto para se tornar este objecto concreto.” E bonito.
Emília Ferreira lembrou que na altura em que escreveu esta história “estava muito envolvida nas questões dos pré-socráticos, nas questões da mitologia e queria escrever sobre coisas antigas, primordiais”. A actual directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC) e da Casa-Museu Dr. Anastácio é formada em Filosofia. Contou ainda que um dos jurados do prémio, a que se concorre sob pseudónimo, estava convencido de que o texto teria sido escrito “por um homem e de idade avançada”. O que divertiu a audiência que se reuniu no pátio da livraria e editora Snob, com Rosa Azevedo como anfitriã.
Ler, reler e congeminar
Um excerto do texto: “Nada existe no interior da floresta. Por isso os homens ficam no rio com as suas casas flutuantes. Não há nada longe das águas onde o olhar se afunda. Apenas as árvores estáticas, sustentando o firmamento, encerrando o seu olhar noutros abismos.”
Ivone Ralha disse que este tipo de texto lhe permite explorar um caminho que lhe é caro, “trabalhar as cores, as texturas, os ambientes”.
Num pequeno vídeo elaborado para o MNAC, a ilustradora explica como é o seu processo de trabalho: “Primeiro é o texto, depois, ler, reler e congeminar. (Aqueles dias mais ou menos aluados em que a atenção fica selectiva. Tudo serve para organizar ideias, testar formas e cores.)”
Normalmente, pinta a acrílico sobre papel “tela de linho” porque lhe agrada a textura. No entanto, usa também outros papéis e recorre a máscaras e sprays. Gosta ainda de “desenhar com café, vinho e esferográfica numa toalha num restaurante”.
Este é o segundo livro desta colecção assinado por Emília Ferreira e Ivone Ralha (ex-colaboradoras do PÚBLICO), o primeiro foi Sopros do Mar Antigo, ambos editados pela Escola Portuguesa de Moçambique — Centro de Ensino e Língua Portuguesa, com a coordenação editorial de Teresa Noronha.
“Dentro do mar cresce um rio imenso e, maior que a solidão dos pássaros, é a sede dos barqueiros remando pelas luas. Maior, muito maior do que o canto das aves, cresce e revela-se o rio no seio do mar, inchando, subindo até à flor dos dedos, obrigando os barqueiros a remar sempre, até ao infinito, sempre, sempre.” Assim começa um livro inspirado num caderno ainda por estrear.