Muito se aprende com Trincadeiras velhos
Vai uma pessoa provar vinhos novos do Tejo e sai de lá com uma lição espantosa, tudo por causa de um Trincadeira da Casa Cadaval, com 30 anos, nascido de um vinha à moda de Colares.
Sempre tivemos um fraquinho por vinhos de Trincadeira. E quem diz Trincadeira diz Castelão, Alfrocheiro, Jaen, Bastardo, Tinta Francisca, Tinta Grossa e Tinta Gorda. A paixão vem de longe e cresceu à medida que os produtores se entrincheiraram, por assim dizer, naquela dezena de castas que, de norte a sul, enchem largos milhões de garrafas. Portugal não é original nesta matéria (muito pior é a poderosa França), o mercado manda muito e os consumidores são adeptos do jogo pelo seguro. Sucede que, por vezes, é um bocadinho aborrecido quando, numa prova de vinhos do Douro, cheiramos um copo e topamos logo a receita do costume: Touriga Nacional + Touriga Francesa + Tinta Roriz, talvez um bocadinho de Tinto Cão, talvez uns pós de Sousão e pronto. O mesmo se poderia dizer no Alentejo com a receita Aragonês + Trincadeira + Alicante Bouschet + Touriga Nacional. E isto só para falar das duas maiores regiões.
Ainda assim, assiste-se a um movimento de inversão das receitas padronizadas. Como? Através da recuperação das castas ditas minoritárias; através de novas abordagens vitícolas e enológicas às castas principais (muito importante); através do arrojo de pequenos e médios produtores; através de um melhor conhecimento dos solos ou das vinhas de parcelas; através da valorização das vinhas velhas ou mais ou menos velhas; através da recusa do excesso de madeira nova e, finalmente, através do lançamento de vinhos no tempo certo e não no tempo de desejo dos comerciais e das garrafeiras. Este Trincadeira Preta 2018, da Casa Cadaval (Tejo) junta algumas variáveis desta equação. E, de facto, não é mais do mesmo.
Regresso à matriz da Trincadeira Preta
Decorria a iniciativa Tejo a Copo no Convento de São Francisco, em Santarém, com cada produtor a mostrar as suas colheitas recentes, quando Tiago Correia, enólogo da Casa Cadaval, nos esticou um copo com uma amostra de vinho com tons acastanhados e saído de um decanter arrumado num canto da mesa em cima de gelo. Poder-se-ia dizer que, depois de uma bateria de tintos jovens, qualquer vinho com 10 anos seria um bálsamo para o nariz e para a boca. Certo, mas a realidade é que o Casa Cadaval Trincadeira Preta 1993 (sim, com 30 anos) estava desafiante, com finura e mistério.
Talvez também estivesse em cima da mesa à laia de isco para agarrar um qualquer crítico de vinhos de passagem, porque quando perguntámos ao Tiago e à Cátia Casadinho (enóloga e responsável da área comercial) se havia mais coisas destas perdidas na adega de Muge e em condições de prova, a resposta foi que “sim, senhor”, de maneira que umas semanas depois estávamos diante de 15 varietais de Trincadeira (agora voltou a Trincadeira Preta), entre os anos de 1992 e 2010.
Como é habitual nestas circunstâncias, há vinhos muito bons, vinhos bons, vinhos que já foram vinho e vinhos que ou foram vítimas de rolhas fracas ou de coisas como fenóis voláteis (o famoso suor de cavalo). Da década de 1990 – aqui sob o controlo de João Portugal Ramos –, o tinto de 1994 encantou-nos pelos aromas de madeiras exóticas e pelas notas de especiarias na boca, o de 1995 pelas notas de couro e pela boca acetinada, o de 1996 pelos aromas balsâmicos (aquele perfume de eucalipto trouxe à memória os grandes tintos do Mouchão), e o de 1998 pelo cheiro de rebuçado de frutos vermelhos à mistura com ervas secas, com a boca a destacar os sabores de cogumelos.
Já a década de 2000, da responsabilidade de Rui Reguinga, não nos pareceu tão glamorosa. Fruto dos tempos e da necessidade de agradar a críticos americanos adeptos de estrutura, álcool e madeira aos saltos, os vinhos (fenóis voláteis à parte, em duas ou três colheitas) estavam mais pesados, extraídos e alicorados, talvez com as excepções das colheitas de 2000 e 2008. A ideia com que ficámos foi que se forçou a Trincadeira a comportar-se como uma Touriga Nacional ou um Syrah. Não funciona.
A partir de 2010, agora com David Ferreira, parece haver um regresso à matriz própria da casta, com maior exploração do carácter vegetal e daquelas notas de cinza e fumo que fazem da Trincadeira uma casta especial quando o tempo, os solos e os clones ajudam e o enólogo inventa pouco.
Uma lição em tempos de desafios climáticos
Por falar na parte vitícola, não se pode deixar de dizer que a vinha de Trincadeira na grande herdade do Cadaval (uns 5 mil hectares) tem, segundo Tiago Correia, “mais de 80 anos e foi instalada nos solos das areias do Tejo à moda do que se fazia e faz em Colares, em pé franco e em covas fundas”. E por que razão alguém se lembrou de fazer tal coisa no Tejo? “Acreditamos que isso tenha que ver com o facto de uma das propriedades da marquesa do Cadaval estar em Colares – a Quinta da Piedade, onde a plantação em chão de areia era a prática regular. Acreditamos que quem plantou esta vinha terá percebido que, cavando na areia até chegar ao solo argilo-calcário, as plantas teriam mais acesso à água no subsolo.”
Como se sabe, a vindima passada foi das mais dramáticas em matéria de seca. Agora, dos 37 hectares totais de vinha da Casa Cadaval, quais foram as parcelas que melhor se comportaram com a falta de água? Lá está, as duas parcelas de Trincadeira plantadas na areia, e “com uma diferença brutal”, enfatiza Tiago Correia.
“E é por estas e por outras que vamos plantar mais Trincadeira, respeitando a metodologia praticada há 80 anos, que, de resto, é bem amiga do ambiente porque, numa região quente, vai prescindir da instalação de um sistema de rega”, remata o enólogo.
Donde, o que pode uma pessoa aprender quando vai a uma prova/festa de vinhos novos em Santarém? Que o Tejo é bem mais diverso do que se pensa; que a Trincadeira (no Tejo, no Alentejo ou em Trás-os-Montes) está de regresso e dá grandes vinhos quando bem trabalhada (anos complicados à parte); que a Trincadeira envelhece bem e nós precisamos de educar o gosto dos consumidores para os vinhos com idade; e que, pasme-se, o sistema de plantação de uma vinha com 80 anos é uma lição em tempos de desafios climáticos. Não é pouco, pois não?
Nome Casa Cadaval Trincadeira Preta 2018
Produtor Casa Cadaval
Castas Trincadeira Preta
Região Tejo
Grau alcoólico 13
Preço (euros) 13
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Quem for adepto de concentração nem perca tempo, passe à frente. Aqui temos, com tons bem abertos, aromas de frutos vermelhos, frutos secos e notas vegetais e de cinza/fumo. Na boca, sedoso e viciante, com a acidez e o álcool no ponto certo (13 por cento é uma bênção). À mesa estará muito bem, mas mesmo sem comida dá imenso prazer.