Há uma revolução silenciosa no Tejo

Fernão Pires e Castelão fazem o seu caminho e há produtores a recuperar outras castas regionais, a explorar diferenças de solos, a testar conceitos enológicos. É o Tejo a construir a sua identidade.

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Prova de vinhos do Tejo, à mesa do restaurante Oh! Vargas, em Santarém Rui Gaudêncio
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O Tejo teve a necessidade de importar castas para demonstrar o seu potencial enquanto região produtora de vinhos de qualidade. Agora fala-se cada vez mais da importância das castas regionais Rui Gaudêncio
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A tertúlia Lei das Quintas junta enólogos e produtores da região, para conversas informais sobre os vinhos e aquilo que os rodeia Rui Gaudêncio
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O Tejo será a região vitícola mais difícil de explicar aos consumidores. Produz vinho há séculos, e, ainda assim, não tem um perfil de vinho que faça alguém entrar num restaurante e dizer, com convicção, “Hoje apetece-me algo do Tejo e não me venham cá com propostas do Alentejo ou do Douro”. Por que razão tal acontece? Ironicamente, porque a região do Tejo teve e tem um enorme potencial agrícola.

O Ribatejo e o Oeste – onde estão inseridas as regiões vitivinícolas do Tejo e de Lisboa – são os grandes territórios de produção alimentar do país. Como tal, tiveram ao longo da história de se adaptar em função daquilo que o país precisava para comer. E sempre a grande velocidade. Com terrenos ricos e extensos, água disponível e casas agrícolas com gente capaz, produzia-se aquilo que o mercado precisava e em quantidades generosas, fossem cereais, vegetais, fruta, azeite, carne e, claro, vinho. Vinho que tanto servia para abastecer as tabernas da capital, as antigas colónias ou mesmo outras regiões vitícolas nacionais (convém não esquecer). Donde, no muito fértil Ribatejo, a agricultura foi sempre um negócio dinâmico e exigente em grandes produções por hectare e, claro, a preços competitivos.

Quando a região entrou no processo de modernização que varreu o país a partir dos anos 1980, o espírito das grandes casas agrícolas não mudou muito em termos de cultura organizacional, pelo que a estratégia, agora num mercado alargado pela UE, foi plantar castas estrangeiras sobejamente conhecidas e castas nacionais de moda e produtivas para, com elas, fazer vinhos bem-feitos, fáceis de apreciar em Lisboa, no Canadá ou na China e – vamos repetir-nos – a preços competitivos.

A quantidade de marcas de vinhos do Tejo que juntam, na mesma garrafa, uma casta nacional e outra estrangeira (Arinto + Chardonnay, Touriga Nacional + Cabernet Sauvignon ou Viognier + Alvarinho) é o suporte desta tese. Se alguém no estrangeiro não conhecesse a região do Tejo e as castas Arinto, Fernão Pires, Touriga Nacional, Castelão ou Alvarinho, as variedades francesas estavam lá para atestar qualidade e segurança.

No fundo, o Tejo teve a necessidade de importar castas para chamar a atenção dos mercados para o seu potencial enquanto região produtora de vinhos de qualidade. Só que tal estratégia continuava a falhar na construção da identidade dos vinhos do Tejo. Mas isso, como se verá nos próximos dias no Terroir, é passado. Já lá vai. Neste momento, há um “processo revolucionário em curso” nos vinhos do Tejo. Devagar, silencioso, mas promissor.

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“Agora que já toda a gente sabe que no Tejo se faz grandes vinhos, se calhar está na altura de regressar ao passado”, aponta Pedro Gil, enólogo da Adega Cooperativa do Cartaxo, com o sentido na recuperação das castas regionais. rui gaudêncio

As castas, os solos e o clima

Como em qualquer processo revolucionário, os seus autores são variados, mas quem funcionou como catalisador foi a actual equipa que gere a Comissão Vitivinícola Regional do Tejo (CVRT), liderada por Luís de Castro, que está, há quatro anos, a usar as castas Fernão Pires e Castelão como porta-estandarte da região. Não sendo castas exclusivas do Tejo, são históricas e bem adaptadas à região, mas, regra geral, usadas para a produção de vinhos de volume. Ora, a equipa da CVRT lançou o desafio aos produtores para que trabalhassem individualmente as castas. E, pouco tempo depois, surgiram inúmeros vinhos varietais de Fernão Pires e de Castelão. “Aliás, se durante décadas o Castelão foi conhecido como João Santarém, isso só quer dizer que a casta está mais do que adaptada”, defende Luís de Castro.

Todavia, agora que a qualidade é mais importante do que a quantidade, isso significa que a escolha dos clones e dos solos onde deve estar instalado o Castelão é determinante para a produção de vinhos distintos. E é também isso que está a ser feito na região. Como dizem os produtores ribatejanos, “É preciso ver de que Castelões estamos a falar”. Muita gente já percebeu que não faz sentido trabalhar o Castelão como quem trabalha Touriga Nacional ou Syrah.

A partir da casta Fernão Pires – que em breve dará origem a uma nova categoria de vinho do Tejo – nasceram perfis de vinhos para todos os gostos. Vinhos mais leves, vinhos com estágio prolongado em madeira ou garrafa, espumantes, colheitas tardias ou versões fernão pirão (curtimenta). Vinhos de solos de areia, vinhos de solos ricos ou de calhau rolado, que, curiosamente, e contra certas ideias feitas, evoluem muito bem em garrafa. Aliás, são bem mais interessantes a partir do segundo ano após a vindima. Alguns, com cinco ou 10 anos, são extraordinários e farão parte da tal revolução que ocorre no Tejo.

Em matéria de solos, a região é diversa, sendo que é necessário mais investimento, quer institucional quer privado, para estudar esta matéria. Tecnicamente falando, o Tejo apresenta-se com quatro grandes perfis: o Bairro (argilo-calcários em colinas e na margem norte do rio), o Campo (aluviões muito férteis nas laterais do rio), a Charneca (zonas de areias) e os xistos na peculiar serra de Tomar, onde se encontram pequenas parcelas de vinhas velhas.

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Gabriela Gomez

Do ponto de vista edafoclimático, há fenómenos curiosos que merecem também estudo. Aquelas neblinas frias que, na Primavera ou no início do Verão, se instalam durante as manhãs nas laterais do rio (quem já andou à pesca no Tejo sabe do frio que se rapa a puxar redes para as fanecas, sabogas, barbos e afins) são ou não são determinantes para a definição do perfil dos vinhos do Tejo? Em certo artigo, o crítico de vinhos inglês Charles Metcalfe resumiu os vinhos do Tejo da seguinte forma: “Hot days, cold nights – cool wines”. “Só tenho pena de que esta ideia não funcione num slogan em português”, refere Luís de Castro a rir.

Tudo isso merece análise mais fina, à semelhança daquilo que os franceses fazem nas suas terras. E tudo isso merece maior atenção científica por parte da CVRT, da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, das CIM (Comunidades Intermunicipais), dos municípios e, claro, dos privados.

Sim, é pela casta Fernão Pires que se está a construir a identidade dos vinhos do Tejo. Pelo Fernão Pires, pelo Castelão (com rosés, espumantes, tintos, blancs de noirs ou vinhos de maceração carbónica) e pelo arrojo de jovens enólogos que querem voltar a olhar para o passado, mas com ferramentas enológicas contemporâneas.

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"É possível ser-se moderno a partir da tradição", acredita Renata Abreu, que já trabalhou em grandes casas de várias regiões e está em vias de abrir um wine bar em Santarém. "É fundamental apresentar vinhos para nichos que atraiam os enófilos que só falam de vinhos do Douro, do Alentejo, de Bordéus e da Borgonha". rui gaudêncio

O debate tranquilo na Lei da Quinta

Portugal tem uma geração de enólogos com talento e mundo, mas não tem por hábito juntá-los com frequência para, livremente, dizerem o que pensam sobre os destinos das suas regiões. As excepções à regra são o Douro e o Tejo. No Douro, Luís Antunes inspirou a Lei da Terça, que junta, uma vez por mês, enólogos e produtores da região à volta de uma mesa. No Tejo, Joana Pratas (responsável de comunicação da CVRT e também produtora) seguiu o espírito da iniciativa do crítico de vinhos e criou a Lei da Quinta, que faz exactamente o mesmo.

Na última Lei da Quinta de Abril, o convidado palestrante foi Pedro Gil, enólogo da Adega Cooperativa do Cartaxo, que deixou os restantes convidados de queixo caído com uns vinhos velhos da frasqueira da cooperativa que trouxe para o jantar. Vinhos de Castelão, de Fernão Pires, de Trincadeira e afins. Um Castelão de 1978 e um Fernão Pires de 2007 estavam simplesmente soberbos. Perante os elogios aos vinhos e confrontado com a evidência de que as tais castas, que foram substituídas pelas Tourigas e companhia, merecem regressar à ribalta no Tejo, Pedro Gil, que até costuma ser reservado, criou aquilo que pode ser outro slogan perfeito para região: “Agora que já toda a gente sabe que no Tejo se fazem grandes vinhos e agora que soubemos chamar a atenção para a região, se calhar está na altura de regressar ao passado.”

Atenção que este passado nada tem que ver com vinhos de má memória (os carrascões). Tem que ver com o trabalho a partir de castas regionais, que, tratadas com o conhecimento que hoje existe na vinha e na adega, dão vinhos com personalidade e adequados aos tempos que vivemos, com a tendência para a redução de álcool, redução de madeira, menos extracção, menos taninos e mais acidez (não obstante ainda haver muita procura por vinhos que são o contrário de tudo isso). A gama Bridão, com dezenas de referências e milhões de garrafas vendidas na restauração, merecia um estudo académico e é, na realidade, um espelho do Tejo moderno, visto que explora todas as castas e mais algumas.

Mas, para uma cooperativa que faz 10 milhões de litros de vinho, é ou não é possível trabalhar as castas regionais Fernão Pires e Castelão em categorias premium? “Claro que é”, responde o enólogo. “Se, do ponto de vista comercial, se entender que tais vinhos têm procura, nós podemos perfeitamente fazê-los. Uvas para isso não nos faltam.” Entusiasmado, continua: “No Cartaxo, tenho uvas de qualidade e com um equilíbrio natural tão perfeito que não sei se existe algo parecido noutra região.” Tudo certo, mas espera-se, agora, que a adega regresse aos varietais de Fernão Pires e Castelão, até porque, como se sabe, alguns mercados externos começam a pedir vinhos portugueses, mas com castas portuguesas.

Presente na mesa do restaurante Oh Vargas – “sede” da Lei da Quinta em Santarém – e à volta de um menu celebrativo do 25 de Abril, estava João Correia Lino, que, entre outras coisas, é autor dos vinhos Crono (região de Lisboa e Dão) e professor na Escola Superior Agrária de Santarém. Com o sócio Manuel Ribas Fernandes, está a instalar uma vinha no Escaroupim (terra famosa junto ao rio Tejo e com solos de areia) com as castas Bastardo, Trincadeira, Fernão Pires, Trincadeira das Pratas e Alicante Branco. As últimas quatro castas não nos mereceram espanto, mas... Bastardo, a casta do Douro? Porquê? “Fizemos um trabalho de investigação junto do Instituto Nacional de Investigação Agrária (INIAV) e constatámos que, nos concelhos do Cartaxo, Almeirim, Salvaterra de Magos e Benavente, a casta Bastardo era abundante das vinhas. Por alguma razão haveria de ser.”

Para a mesa da Leis das Quintas, iniciativa que junta regularmente enólogos e produtores da região, Pedro Gil levou alguns vinhos velhos da Cooperativa do Cartaxo que deixaram os participantes de queixo caído. rui gaudêncio
O regresso “às castas regionais, nacionais ou ibéricas que já foram importantes aqui" é um dos pilares da visão de João Lino para a região - e para os vinhos que pretende produzir, na vinha que está a instalar no Escaroupim. rui gaudêncio
“No Cartaxo, tenho uvas de qualidade e com um equilíbrio natural tão perfeito que não sei se existe algo parecido noutra região”, sublinha Pedro Gil. rui gaudêncio
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Para a mesa da Leis das Quintas, iniciativa que junta regularmente enólogos e produtores da região, Pedro Gil levou alguns vinhos velhos da Cooperativa do Cartaxo que deixaram os participantes de queixo caído. rui gaudêncio

Ser moderno "a partir da tradição"

A ideia de João Lino é bem reveladora do que vai ser a região do Tejo nos próximos tempos. “Primeiro, devemos regressar às castas regionais, nacionais ou ibéricas que já foram importantes aqui (agora com novas abordagens); segundo, explorar castas que façam diferença perante as outras regiões; terceiro, instalar castas adaptadas às alterações climáticas e, quarto – já agora –, meter castas que se traduzam em vinhos que eu aprecio.”

Renata Abreu dedica a sua vida ao vinho e já trabalhou em grandes casas do Tejo, de Setúbal e do Douro. Por estes dias, prepara a abertura de uma garrafeira com wine bar em Santarém. A sua tese sobre os vinhos do Tejo é esta: “As empresas têm de perceber que é possível ser-se moderno a partir da tradição (trabalhar as castas regionais), que é fundamental apresentar vinhos para nichos que atraiam os enófilos que só falam de vinhos do Douro, do Alentejo, de Bordéus e da Borgonha (o que não significa abandonar as outras gamas) e que é urgente apostar no enoturismo.”

O enoturismo é, de resto, um tema constante quando se fala do Tejo. A região está próxima de Lisboa, tem um património edificado enorme, Santarém é o que se sabe e, em volta, já existem iniciativas ora populares ora mais elitistas (Festival Nacional de Gastronomia, Feira Nacional de Agricultura ou Festival Entre Quintas), mas programas de enoturismo bem desenhados para mercados internos e externos não existem. Renata é peremptória: “Quando quero organizar um evento no Alentejo, ligo para as empresas de lá e tenho propostas um dia depois; no caso do Tejo, na melhor das hipóteses, tenho respostas uma semana depois.”

Ainda assim, as coisas mexem-se. E em todos os sentidos. Há hoje empresas que exploram ao detalhe a riqueza dos seus solos (Falua, Quinta da Alorna e Ninfa), há empresas que vão recuperar sistemas de plantação à moda de Colares para castas regionais em solos de areia (Casa Cadaval), há empresas que estão empenhadas em explorar sistemas agrícolas biológicos e/ou regenerativos (Ode Winery), há pequenos produtores que estão a explorar vinhas velhas em locais improváveis (Pedro Sereno ou Filipe Vasconcellos na Serra de Tomar), há empresas de volume que percebem que têm de criar os tais vinhos de nicho de que Renata Abreu falava (Quinta da Lagoalva).

Há empresas a fazer coisas fora da caixa (como o vinho de maceração carbónica de Castelão da Companhia das Lezírias), há empresas a explorar intencionalmente vinhos brancos com tempo de garrafa (Sociedade Agrícola Areias Gordas ou Casal das Aires), há uma empresa com uma aguardente clássica fabulosa e outra com experiências disruptivas (Atela e Quinta da Alorna), há uma empresa que voltou a colocar no mercado um varietal Trincadeira das Pratas (Parceiros na Criação), a Cooperativa do Cartaxo vai investir numa adega de microvinificações e há outra, a Cooperativa de Almeirim (o maior produtor de vinho do país numa só região), com um belo Fernão Pires – o ACA –, vendido a 54 euros (a caixa de 6 garrafas, tenham lá calma).

E é sobre alguns destes projectos que falaremos nos próximos dias. A história, a vastidão territorial, a cultural organizacional, a irreverência e a capacidade das empresas de se adaptarem ao ar dos tempos nem sempre facilitam a definição de um perfil de vinho do Tejo. Mas o trabalho a partir do Fernão Pires e do Castelão e de outras castas regionais (Trincadeira ou Trincadeira das Pratas) vai mudar as coisas. Já está a mudar. Quem ande pela região a provar aqui e ali – do Cacho Fresco ao Sauvigon Blanc da Ninfa e passando por inúmeros Fernão Pires ou castelões – não tem a vida facilitada. No fundo, a pergunta é esta: Quantos Tejos cabem no Tejo? Vários. Isso é bom ou mau? É excelente. Dá mais trabalho a explicar? Pois dá, mas é a vida.

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