Ricardo Simões vive uma espécie de vida dupla: durante a semana trabalha como bancário, mas a partir de sexta-feira à noite transforma-se num desportista que corre quilómetros na companhia do cão Bryan, de três anos.
Chama-se “canicross”. Ainda é pouco conhecido em Portugal, mas não é muito diferente do mushing dos países frios, desporto em que os cães, normalmente huskies, puxam o trenó, enquanto correm pela neve. As semelhanças são tantas que é conhecido como “o mushing dos países quentes” e tem grande expressão em países como Espanha, que, segundo Ricardo, organiza provas quase mensalmente.
“Quando fiquei com o meu cão, já sabia que os weimaraners eram animais interessantes para a corrida”, recorda ao P3. Assim que começou a introduzir a modalidade “foi paixão à primeira vista”.
Neste desporto, o cão é quem vai à frente, mas obedece sempre às ordens do tutor. Bryan, por exemplo, começa a correr quando Ricardo diz “go”, pára quando diz “stop” e abranda quando ouve a palavra “menos”. Não sabemos que palavra é proferida com maior frequência — nem qual dos dois gosta mais de correr. Para o bancário, o canicross traz bem-estar físico, mas para o cão significa poder gastar toda a energia acumulada (e sem fazer estragos em casa).
“Ele adora correr e distingue o passeio da corrida. Quando vê a trela, tem um comportamento, mas quando vê o equipamento de corrida, fica muito mais eufórico”, conta o dono.
Porém, para praticar canicross é preciso regras, defendem o presidente e a vice-presidente da Associação Portuguesa de Mantrailing e Canicross (APMC), Rui Resende e Sandra Ferreira. O objectivo é garantir a segurança e a satisfação do animal.
Para começar, não podem correr, se tiverem menos de um ano, uma vez que as “articulações e músculos ainda se estão a desenvolver”. Além disto, destaca Rui, o canicross é um desporto de Inverno e correr quando as temperaturas estão acima dos 19 graus é proibido: “O cão nunca nos vai dizer que não mesmo que esteja em situações limite e é preciso ter cuidado.”
Ricardo sabe de tudo isto e segue à risca as regras nos treinos que variam entre trilhos de montanha e pedonais. Apesar de correr o ano inteiro, só o faz durante a noite ou de madrugada, quando o termómetro em Leiria está abaixo dos 15 graus. Se Bryan abrandar, respeita isso — e o mesmo acontece ao contrário.
União entre tutores e animais
Natália Fialho e as cadelas Íris e Shamo praticam a mesma modalidade em Lisboa. Para esta treinadora de cães, saber identificar os comportamentos destes animais é uma tarefa tão fácil como caminhar, mas acompanhar os dois bracos é que já não é assim tão simples. Quando desce a serra de Sintra, onde vive, com as cadelas a puxarem-na, a dificuldade aumenta. É nessas alturas, que se lembra que deveria ter trazido a bicicleta. Tarde demais.
Tal como Ricardo, Natália ficou a conhecer o canicross quando procurava uma solução que ajudasse a melhorar o comportamento “demasiado reactivo” de uma das cadelas. No entanto, nunca pensou que também fosse gostar. “Nunca é tarde para nos divertirmos”, diz.
“Não sou o melhor exemplo de desportista. Em Fevereiro fui a uma prova à Camarena [em Toledo] e fiz 15 quilómetros num sábado à noite e mais 15 no domingo de manhã com temperaturas de zero graus”, conta, sem revelar em que lugar ficou.
Para o presidente da APMC, as competições são apenas um extra neste desporto “de união e para todas as idades”. E, além disso, pode ser ideal para animais com problemas de socialização — incluindo os que têm medo de outros cães.
Até ao momento, foram organizadas duas provas de canicross em Portugal, uma das quais no início de Abril, em Sernancelhe. Ricardo, que não conseguiu participar, gostava de organizar uma em Leiria. “Esta actividade tem muito para crescer no nosso país”, sentencia.
Vantagens (e riscos) para os cães
Sempre que corre com o dono, Bryan vai focado no trajecto e ignora todos os cheiros ou cães que possam cruzar-se no seu caminho. Íris e Shamo não conseguem estar quietas, se virem Natália com o arnês e trela na mão. Contudo, esta alegria não basta: é preciso acautelar os riscos.
A veterinária Filipa Bernardino percebe as vantagens que correr traz aos cães, mas destaca o perigo que o calor pode trazer. A água, por outro lado, é o melhor aliado e deve estar presente quer se vá correr ou caminhar.
“Os animais não têm a capacidade que nós temos de transpirar. Como só têm as glândulas sudoríparas nas almofadas plantares (patas) e no nariz, a forma que têm de eliminar o calor é através do arfar; portanto, são muito mais limitados do que nós em termos de [gestão da] temperatura”, explica. Atingir temperaturas elevadas, a chamada “hipertermia”, é uma ameaça, assim como os golpes de calor.
Rui Resende acrescenta que a força que os cães exercem quando puxam o tutor pode trazer problemas de saúde no futuro, caso o arnês vertical, cinto e trela não sejam os mais adequados.
“As pessoas saberem usar este equipamento é a nossa maior preocupação. Às vezes os cães correm com aqueles arneses horizontais que impedem que puxe e o movimento livre das pernas”, explica. “É a mesma coisa que tentar correr com as calças descaídas. Não nos conseguimos movimentar”, acrescenta.
Da mesma forma, cães braquicefálicos, como o pug, o boxer ou o bulldog francês, não devem participar neste desporto. O mesmo se aplica aos huskies ou malamutes-do-alasca que não suportam temperaturas como as de Portugal.
Sandra Ferreira deixa também o alerta: “Os cães que têm displasia da anca, os que têm problemas articulares mesmo não sendo velhos ou problemas de saúde que lhes impossibilitem uma mobilidade normal não devem fazer canicross.”