Quem és tu?

Caminhar com horário ou com o tempo cronometrado rouba-nos o essencial da experiência: perceber o mundo de uma forma mais plena e consciente.

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Jad Limcaco/Unsplash
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Gosto de andar a pé.

Gosto da lentidão com que tudo no meu corpo se processa, quer me encontre num local sem movimento – e nesse caso sinto-me em harmonia com o ambiente externo a mim –, quer me encontre no centro de uma cidade, com dezenas de veículos e de pessoas a avançarem a um ritmo diferente do meu. Como gosto de caminhar devagar, sinto-me um caracol entre gazelas, chitas e leões.

Gosto também da sensação de realização que me proporciona estar em movimento e, ainda, chegar a algum lugar pelos meus próprios meios – a isso não será indiferente o facto de em determinada altura da minha vida ter-me visto muito limitado nesse aspeto. Paralelamente, caminhar remete-me para a ideia de voltar ao básico, à exclusiva dependência do meu corpo. E isso permite-me desligar do frenesim tecnológico e afastar-me, tanto quanto é possível, de pensamentos e ideias alheias, facilitando o meu raciocínio e a aproximação a mim próprio, às minhas ideias e essência.

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A ciência sustenta as minhas sensações, sendo unânime entre os estudiosos da matéria que caminhar aumenta o fluxo sanguíneo e o fornecimento de oxigénio ao cérebro, o que pode melhorar a função cognitiva, a clareza mental e a criatividade. Mas a ciência explica muita coisa que muitos de nós nunca chegamos a comprovar. Por um lado, sei que muitos dos que lerem este ponto 2 concordarão comigo. Por outro lado, sei que muitos não concordarão. "Permita-me discordar, João, mas nunca senti que caminhar me ajudasse a pensar, apenas e só me cansa", escreverá o leitor xpto na caixa de comentários. E ciência alguma poderá tirar-lhe a razão, quanto mais eu.

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No interessantíssimo livro Daily Rituals – How Great Minds Make Time, Find Inspiration and Get to Work, o coscuvilheiro Mason Currey desvenda-nos em pormenor as rotinas de grandes filósofos, escritores, compositores e artistas, como Albert Einstein, Pablo Picasso, Emmanuel Kant, Benjamim Franklin ou Gustave Flaubert, entre muitos outros – o livro visa os hábitos de 160 pessoas. A prática dos passeios a pé faz parte (ou fez, visto alguns dos visados já terem morrido) das rotinas diárias de muitos deles, sendo, segundo os próprios, uma ferramenta fundamental da sua criação. Outros, todavia, preferem a completa inação física ou o álcool como utensílios auxiliares da criação. A ciência também o explicará. Confesso que não pesquisei.

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Tudo o que atrás escrevi exige um contexto: caminhar sem pressa. Sem horas para chegar. Caminhar com horário ou com o tempo cronometrado rouba-nos o essencial da experiência: perceber o mundo de uma forma mais plena e consciente, consciencializando-nos de que somos parte do todo que rodeia o nosso corpo, os sons, cheiros, texturas, o vento que nos toca o rosto, o sol ou a chuva que toca a nossa pele, o chão sob os nossos pés.

Eis o inverso da vida em piloto-automático que nos anestesia. Caminhar devagar convida a explorarmo-nos interiormente e a refletir sobre as nossas próprias vidas e a nossa posição no mundo.

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"É precisamente este o segredo que detêm todos aqueles que andam a pé; a vida prolonga-se quando andamos a pé. Caminhar expande o tempo em vez de o fazer colapsar", diz-nos Erling Kagge no início da sua caminhada (página 31) no livro A arte de caminhar.

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"Quem és tu?", soprou-me o vento esta manhã, a instantes do nascer do sol, pouco depois de ter começado a caminhar. Matreiro, o vento, escondido na linha do horizonte à espera da primeira alma que saísse do aglomerado de prédios e se expusesse à sua força, sem possibilidade de abrigo ou refúgio, no vasto terreno baldio.

Parei, de rosto contra o vento, semicerrando os olhos para me defender da poeira, e sussurrei-lhe: "Não temo a tua pergunta, amigo vento, ela é tão impermanente quanto tu ou eu." E, pela milésima vez, dei-lhe a resposta que sempre se sobrepõe a todas as outras: "Sou um ser humano a caminhar ao nascer do sol."

E segui caminho com a brisa ligeira a empurrar-me gentilmente pelas costas.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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