O sangue anticolonial francês correu nas veias dos combatentes do PAIGC

Cerca de 80 litros de sangue foram recolhidos em França e enviados para a Guiné-Conacri em 1970 para apoiar feridos do PAIGC, numa das faces mais cruentas da solidariedade anticolonial francesa.

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Quatro guerrilheiros do PAIGC em marcha no interior da Guiné Göksin Sipahioglu/Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso
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As palavras “luta anticolonial” e “descolonização” dispensam metáforas e as práticas que convocam, quando olhadas sem flores de retórica, incitam à ação. Os movimentos independentistas das colónias portuguesas em África constituem, a esse respeito, úteis campos de observação. Por um lado, porque forjaram frentes de luta que transcenderam, em larga medida, a geografia dos seus teatros de ação armada. Por outro, os seus repertórios de ação geraram interações de índole diversa e influenciaram, à escala transnacional, a imaginação política de muitos militantes anticolonialistas, anti-imperialistas e antirracistas em diferentes países.

Por isso, essas lutas devem ser apreendidas como processos multidimensionais que produziram várias ramificações. Por exemplo, elas influenciaram a agenda cultural e política do ativismo militante nos países ocidentais que apoiavam Portugal no esforço da guerra colonial. As ações produzidas em África pelos movimentos de libertação inflamaram a imaginação política de militantes anticolonialistas europeus, persuadindo-os a integrar as demandas pela independência das colónias portuguesas no repertório de reivindicações dos seus respetivos países. Observemos, sem encantos híbridos, alguns efeitos que a luta do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderada por Amílcar Cabral, gerou em França junto de diversos intelectuais e ativistas anticoloniais.

A França, aqui, não é uma escolha fortuita.

Primeiro: Cabral e militantes do PAIGC tinham uma vasta rede de contato com jornalistas, cineastas, fotógrafos, artistas, intelectuais e ativistas franceses e estrangeiros sediados naquele país.

Segundo: o Governo francês era um dos aliados ocidentais que conferiam apoio político a Portugal (na ONU e na NATO) e ajuda técnico-militar para a Guerra Colonial.

Terceiro (e este facto é significativo): foi em Paris que se criou um dos primeiros comités de apoio anticolonial na Europa (a par do Angola Comité formado em Amesterdão em 1961) para auxiliar a libertação das colónias portuguesas.

Quarto: França foi, a partir de 1960, o principal destino de milhares de portugueses (migrantes, exilados, refratários e desertores) que fugiram da ditadura, da pobreza e da Guerra Colonial; muitos participaram nas atividades do comité de apoio francês.

Quinto: com a independência da Argélia (1962), vários anti-imperialistas franceses (re)direcionaram as suas ações militantes para as lutas nas colónias portuguesas, sendo o anti-imperialismo um dos traços da cultura de protesto mais tarde associada ao Maio de 68.

Finalmente (um episódio prenhe de moralidade política): em 1966, Amílcar Cabral foi proibido de entrar em França.

A criação do comité de apoio anticolonial

Segundo Cabral, “era a atitude dos povos e dos seus governos em relação às nossas lutas que determinava a nossa atitude em relação a esses povos e seus governos. No momento presente assim como no futuro, temos de conhecer claramente quem são os nossos amigos e quem são os nossos inimigos”. Em França, a solidariedade com as lutas nas colónias portuguesas nasceu como corolário das insurreições independentistas ocorridas em Angola em 1961. O Le Monde noticiou-as. A revista Présence Africaine também proclamou apoio em 1961 aos movimentos que iniciaram a luta armada pela independência: a União das Populações de Angola (UPA) e o MPLA Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

Por seu lado, a Société Africaine de Culture et les Amis de Présence Africaine (formada por escritores, artistas e intelectuais de África e das Antilhas) publicou uma moção condenando a guerra colonial portuguesa contra o povo angolano, exortou organizações anticolonialistas do mundo a apoiarem os independentistas, incitou a opinião pública internacional a criar comités de apoio e anunciou a formação em França de um Comité de Soutien au Peuple Angolais — Comité de Apoio ao Povo Angolano — aberto a todas as pessoas que lutam pela justiça e liberdade.

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Frontispício de um boletim do Comité de Soutien à l’Angola et aux Peuples des Colonies Portugaises DR

A ação da Présence Africaine e seus diletos não deve ser interpretada como evento anódino, desvinculado das redes de relações da revista com alguns indivíduos. Em inícios de 1950, o angolano Mário Pinto de Andrade (futuro fundador do MPLA) já mantinha correspondência com Alioune Diop, diretor da Présence Africaine. E entre 1954-1958 Andrade trabalhou em Paris como secretário pessoal do próprio Diop. Se o Comité criado em 1961 orientou inicialmente o escopo de apoio para as lutas em Angola, a partir de novembro de 1962 o coletivo muda a designação: Comité de Soutien à l’Angola et aux Peuples des Colonies Portugaises — Comité de Apoio a Angola e aos Povos das Colónias Portuguesas. Tal como referido nos anteriores artigos desta série, ao longo dos anos, criaram-se comités semelhantes em diferentes países (Alemanha, Bélgica, Canadá, EUA, Holanda, Suíça, entre outros).

A ação dos comités de apoio é crucial para compreendermos, por um lado, as artes de conectar lutas. Por outro, permite-nos compreender como as ações produzidas a partir do Sul Global, nomeadamente nas colónias portuguesas em África, fizeram surgir outras frentes de luta, estimulando a iniciativa de atores geograficamente dispersos e não implicados nos teatros de combate armado.

O comité de apoio francês teve um papel fulcral na divulgação das lutas do PAIGC em França e na Europa: criou audiências e promoveu a imagem de Cabral como líder revolucionário. Por exemplo, pouco depois de iniciar a luta militar na Guiné, a 23 de janeiro de 1963, Cabral deu uma conferência de imprensa em Paris, informando a opinião pública sobre as razões que levaram o PAIGC a transpor o protesto político para a ação armada. Em maio de 1964, na capital francesa, pronunciou outra conferência, perante 30 jornalistas, abordando aspetos da libertação da Guiné e Cabo Verde. Tais conferências foram organizadas pelo comité de apoio francês e, através delas, Cabral e as reivindicações do PAIGC ganharam destaque em jornais de grande circulação como Le Monde, L’Humanité e Libération.

Para compreendermos estas ações, temos de descer ao detalhe e compor (em parte) a cartografia dessas ramificações.

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Amílcar Cabral durante uma conferência de imprensa em Paris sobre os movimentos de libertação Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

Redes de ação e de solidariedade

Além da conferência de 1964, Cabral deu uma entrevista à jornalista e militante anticolonialista francesa Paulette Péju, publicada no Libération. Autora de dois livros sobre a guerra de independência da Argélia (editados por François Maspero), Paulette era, nessa altura, companheira de Marcel Péju, intelectual francês que entre 1953-1962 trabalhou como secretário da famosa revista Les Temps Modernes, dirigida por Jean-Paul Sartre. Mais: Marcel Péju era um anticolonialista adepto dos movimentos de libertação das colónias portuguesas e, desde inícios de 1960, mantinha correspondência com Cabral.

Mas as relações do líder do PAIGC com militantes franceses não se circunscreviam ao casal Péju. Desde inícios de 1960 que Cabral mantinha contato com anticolonialistas e recebia apoio moral e político de intelectuais afetos ao terceiro-mundismo, como Sartre, o editor (futuro cineasta) Claude Lanzmann, o casal de jornalistas Gérard Chaliand e Juliette Minces, o estudante (futuro historiador) Jean Mettas, a cineasta Catherine Dourgnon, o realizador Mário Marret, o fotógrafo Gilles Caron, o sindicalista Maurice Gastaud, o geógrafo e historiador Jean Suret-Canale, a ativista social Reine Accoce, entre outros. Esta última, por exemplo, atuou como intermediária entre o PAIGC e os anticolonialistas franceses quando Cabral deixou de poder entrar em França: recebia comunicações do PAIGC para serem difundidas entre os ativistas que apoiavam a independência da Guiné e Cabo Verde.

A rede de solidariedade anticolonial criada em França era uma constelação política bastante heterogénea. Por um lado, operava com ações coletivas organizadas pelo comité de apoio e, por outro, atuava por via de micro-interações entre atores individuais situados em contextos bem específicos. Alguns episódios ilustram-no: em fevereiro de 1961, Claude Lanzmann escreveu a Cabral anunciando que os editores da revista Les Temps Modernes e, especialmente, Jean-Paul Sartre, desejavam publicar um artigo da sua autoria sobre o PAIGC. Segundo Lanzmann, todos almejavam sucesso para a “luta heroica do povo da Guiné”. Cabral retorquiu com entusiamo, mas nunca chegou a editar naquele periódico. Porém, em 1962, dois membros do comité de apoio francês, Jean Mettas e Dan André Faber, coautoraram o feito: estamparam na revista de Sartre um artigo sobre a história do colonialismo português na Guiné, os seus efeitos e a proeminência do PAIGC como movimento de libertação.

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Gérard Chaliand, escritor franco-arménio, em conversa com Osvaldo Vieira, do PAIGC, em Julho de 1966 Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso
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"Avec les maquisards de Guinée" ("Com os guerrilheiros da Guiné"), reportagem de Gerard Chaliand para o Le Nouvel Observateur, publicada no dia 13 de Julho de 1966 Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

Mettas foi um dos grandes divulgadores da luta do PAIGC e um dos organizadores das conferências de imprensa que Cabral deu em Paris. Tal como Gérard Chaliand (que também atuou nas atividades do Comité de apoio francês), autor do primeiro livro sobre a revolução anticolonial na Guiné — Guinée “portugaise” et Cap Vert en lutte pour leur indépendance (1964) — e um dos primeiros jornalistas a visitar e a escrever, para a audiência francesa e internacional, sobre as zonas libertadas dirigidas pelo PAIGC.

A militância do comité de apoio francês revelou-se inequívoca em vários aspetos: publicava comunicados do PAIGC; reportava sobre o progresso da luta e a vida das populações nas zonas libertadas; criticava o apoio do Governo francês à guerra colonial portuguesa; denunciava o imperialismo da NATO e a ditadura portuguesa; enviava recursos educativos para escolas das zonas libertadas, supletivos de saúde (medicamentos, livros médicos, vacinas, materiais cirúrgicos); e, acima de tudo, sangue para tratamento de civis e militares feridos em combate.

Para coletar apoios, o comité organizava encontros informativos sobre a luta do PAIGC, promovia galas de solidariedade para movimentos de libertação e exilados da ditadura portuguesa (a Mutualité em Paris foi um dos locais dessas galas), fazia sessões nas residências universitárias e palestras com pessoas que conheciam a realidade dessa luta. Nesses encontros, o Comité exibia filmes de cineastas franceses — Lala Quema (1965), de Mario Marret, Nossa Terra (1966), de Mario Marret e Isidro Romero, Nô Pintcha (1970), de René Lefort, Tobias Engel e Gilbert Igel — realizados nas zonas libertadas da Guiné.

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Cena de Nossa Terra (1966), de Mario Marret e Isidro Romero

As imagens das zonas libertadas serviam para conquistar simpatizantes, mostrar os ganhos da luta e persuadir potenciais doadores a apoiarem o PAIGC, inclusive com oferta de sangue. Segundo fontes do Comité, em 1970 (em dez meses), cerca de 80 litros de sangue foram enviados de França para o hospital Solidarité em Boké (região da Guiné Conacri próxima de Guiné-Bissau), onde o PAIGC tratava feridos de guerra. Esse trânsito de sangue é, sem dúvida, revelador. E Cabral enfatizou-o de forma memorável numa conferência de imprensa em Argel a 28 de abril de 1971: com lirismo e sarcasmo militante pleno de encanto revolucionário, o líder do PAIGC denunciou a contradição entre os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade apregoados pela França e a atitude do Governo francês face às lutas pela independência nas colónias portuguesas; e destacou, sem flores de retórica, a solidariedade dos militantes para com o PAIGC: “Os franceses nos apoiam muito nos seus próprios países e o sangue francês circula atualmente nas veias de muitos dos nossos combatentes.”

A lição que daqui se colhe é inequívoca: a arte de conectar lutas tece redes de ações solidárias. Porque as demandas por uma vida justa estão sempre ornamentadas pelo desejo de revolução.


Referências

Barros, Víctor, “The French Anticolonial Solidarity Movement and the Liberation of Guinea-Bissau and Cape Verde”, The International History Review 42 6 (2020): 1297-1318.

Quemeneur, Tramor, “The French Networks Helping the Independence Movements of Portuguese Colonies. From the Algerian War to Third-Worldism”, Afriche e Orienti, iii (2017): 85-100.

Kalter, Christoph, The Discovery of the Third World. Decolonization and the Rise of the New Left in France, c.1950-1976 (Cambridge: Cambridge University Press, 2016).


Víctor Barros é investigador da École des Hautes Études Hispaniques et Ibériques (Casa de Velázquez) e do Instituto de História Contemporânea (IHC – NOVA FCSH/IN2PAST).

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