O Coração Ainda Bate. A casa da música

Inês Meneses escreve sobre a importância da música nas nossas vidas.

Ainda funciona o velho gravador de cassetes que é também um rádio. Está em cima da mesinha de cabeceira de madeira escura, austera, com que um país inteiro foi mobilando as suas casas. As casas desse país antigo cheiravam a igreja: espaços pouco habitados onde a cerimónia imperava entre mogno torneado e napperons de croché. Um profundo e forçado silêncio invadia estas casas. E a Igreja. As palavras sempre foram uma ameaça à liberdade. Só alguns ousaram romper esse silêncio. E esses (agora sei) fizeram a diferença. Fazer a diferença continua a ser uma coisa sem tempo.

O gravador tem dentro dele a minha adolescência. Depois disso, acompanhou-o a minha mãe, ouvindo a rádio onde também me encontrava. Ali está ele, a um canto, e quando o vejo abro um álbum de memórias que não acaba. Ponho as memórias em repeat como quando puxava as cassetes para trás e para a frente. A memória é uma canção que não quero que termine.

As cassetes eram pequenos troféus que exibíamos: recebê-las queria dizer que tínhamos sido escolhidos. As canções eram-nos dedicadas e cada um de nós corria para as ouvir, tentando que ali se escondessem mensagens que não eram ditas. Foi assim que se alimentaram amores. Depois desgostos, e, ainda assim, voltávamos às canções que tinham perdido sentido no presente, mas que nós teimávamos em puxar para trás: no tempo e naquele gravador que está ali em cima da mesinha de cabeceira, ambos obsoletos, e, no entanto, metade da minha vida passa por ali.

As cassetes. Apeteceu-me pegar numa e rodopiar um dedo numa daquelas circunferências dentadas. (Nunca me ocorreu fazer isto enquanto as tive, tal era a minha devoção.) As cassetes eram pequenas caixas-fortes de amor e dedicação, e agora que olho para trás, percebo que o tempo que lhes dedicávamos já não existe, porque já quase não dedicamos canções a ninguém, mesmo que o poder continue connosco. Sabem o poder que tem uma canção quando a atiramos ao outro? É como abrir-se uma clareira e do vazio escolhermos o nosso par. Um poder absoluto. Obsoleto?

O meu irmão, a dada altura, gravou uma cassete que tinha Sérgio Godinho e The Smiths. Nós ouvíamos juntos e separados a cassete, mas o gravador não parava de a tocar - uma jukebox sentimental que segue a mão de quem a gere.

Como as caixas negras dos aviões, os leitores de cassetes iriam dizer muito de nós. Iriam revelar quase tudo, porque uma canção pode dizer onde é que o coração morre e, na maior parte das vezes, onde vive. Mesmo que doa, e nós sabemos quantas vezes doeu.

Em cada divisão da casa onde cresci poderia haver uma cassete diferente: a minha mãe tinha uma de Maria Bethânia que ouvia sem parar. Eu e o meu irmão (graças a ele) atirávamo-nos para o que o Miguel Esteves Cardoso fazia chegar a uns quantos. “Transmission” ecoou nesta sala. Era um som negro que soterrava o que já era sombrio, mas com uma diferença grande: queríamos ir atrás do que ali se desenhava, era mais do que sabíamos. O meu pai ouvia no seu gira-discos Amália e Marceneiro. Divisões diferentes tinham diferentes canções, e eu, sem saber, cresci com a ideia de que não havia uma música, mas muitas, e todas cabiam na mesma casa.

O gravador está ali a um canto num quarto que primeiro foi do meu irmão, depois meu e por fim da minha mãe. Há ali um eco mudo de tudo o que ouvimos e fomos. Um canto onde a música se ergueu e nos formou. Não tenho dúvidas de que se a música da minha adolescência tivesse sido outra, eu não seria a mesma. Quando as pessoas nos dizem que não ligam muito a música, é quase como dizerem "não sei muito bem quem sou". É importante sabermos quem somos.

A vida não é a música do acaso.


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