A revolução trocada por miúdos… para miúdos
Uma reedição do texto de José Fanha em que conta como viveu o dia 25 de Abril de 1974, contextualiza o que se passou e faz um apelo à memória.
Foi editado pela primeira vez em 2014 e voltou agora, “igualzinho”, às livrarias, por proposta da Penguin/Nuvem de Tinta. “Não senti necessidade de alterar o que quer que fosse. As memórias são as mesmas e continuam todas lá”, diz ao PÚBLICO José Fanha.
“Eram sete horas da manhã ou pouco mais, ainda eu estava em vale de lençóis e preparado para continuar a dormir mais um bom bocado, quando a minha mãe veio abanar-me. — Acorda, filho! Está a acontecer uma revolução!” Assim se entra neste livro, na história do 25 de Abril de 1974 e em tempos mais recuados.
O autor de histórias e poesia para a infância, dramaturgo e dramaturgista, mas que também assina letras para canções e textos para rádio, tem andado com este livro pelas escolas de Sintra e Oeiras.
“A seguir ao espanto de saberem que havia muitas crianças a andar descalças e de que era possível alguém ser morto na rua e ninguém se importar, vem a curiosidade”, descreve o ainda guionista para televisão e cinema.
Diz que se apercebe de que aos miúdos e aos jovens “não lhes tem sido transmitida a memória daqueles tempos, em que a pobreza era imensa”. Tem mediado a leitura deste livro com alunos desde o 1.º ciclo até ao secundário e continuará a fazê-lo noutras regiões, assim as escolas o solicitem.
Tinha 23 anos na altura da Revolução dos Cravos. “Um privilégio”, diz. E acrescenta: “Aos 19 anos, já dizia poesia ao lado do Zeca.”
Do livro, naquela manhã: “— Isto é contra o Regime, mãe! Isto é uma revolução a sério! — Mesmo assim, não vás para a rua. Pode ser perigoso!” Não obedeceu: “Ai não, que não vais. Vesti-me a correr, ainda sem conseguir acreditar. E até tinha medo (…) E se aquela revolução não fosse a sério? E se fossem derrotados? Mas comecei a ouvir as canções. E eram canções do Zeca, do Adriano… Canções de revolta, de alegria, de liberdade.”
Não se podia dizer que os benfiquistas eram “vermelhos”
José Fanha lembra ao PÚBLICO que, antes do 25 de Abril de 1974, era jornalista de Desporto, no Record, e diz agradar muito aos alunos de hoje quando lhes conta que não se podia dizer que os benfiquistas eram “vermelhos”, mas sim “encarnados”.
Também se divertem ao conhecer uma das formas que os insatisfeitos com o regime tinham de se manifestar. Nos momentos que antecipavam as sessões de cinema e em que se “difundia a actualidade, ou seja, a propaganda do regime”, havia sempre alguém que gritava: “Viva o Benfica!” Aplausos e vivas da audiência ao “clube” eram “uma forma de resistir”, recorda.
Salazar, Estado Novo, PIDE, Censura, Mocidade Portuguesa, Modernismo, Neorrealismo e Surrealismo, Humberto Delgado, A Guerra Colonial, Zeca Afonso e os “Baladeiros”, Marcelo Caetano, O Rock Português e o Festival da Canção, Os Oficiais das Forças Armadas são alguns dos temas retratados, que terminam com Os Cravos e Os Dias a Seguir ao 25 de Abril. Muitos dos capítulos são ilustrados com imagens da colecção de Jorge Silva, designer do livro.
Sobre os cravos, símbolo do 25 de Abril, recorda-se, sob o título “A história é bonita e simples”: “Uma senhora trabalhava numa empresa que ia comemorar um ano de actividade no dia 25. Tinham-na mandado comprar muitos cravos para a festa de aniversário. Nesse mesmo dia, pela manhã, quando a senhora chegou à empresa, já a revolução estava na rua e os patrões disseram-lhe para levar os cravos, pois, se ali ficassem, murchavam. A senhora trouxe consigo um grande molho de cravos e, quando encontrou os chaimites a subir para o Carmo, perguntou a um soldado? — Vocês estão aqui a fazer o quê? Eles explicaram que iam prender o Marcelo Caetano. E um soldado perguntou: — A senhora não tem um cigarrinho? — Não tenho cigarros, mas tenho cravos — disse a senhora. E foi dando cravos aos soldados, que os puseram nos canos das armas.”
Um livro que é um olhar particular de uma pessoa com um posicionamento político assumido: de esquerda. Outros olhares haverá e de cariz diferente. Tal deve ser transmitido às crianças e jovens, dando-lhes a possibilidade de escolha e de as convidar ao exercício crítico e de cidadania. Também foi para isso que se fez o 25 de Abril.
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