E quando um simples “alô” te salva a vida?

Após seis anos do sucedido, ontem recebi esta mensagem no Facebook.

Isto de escrever uma crónica por semana, por vezes, sufoca-me. Quando não sinto, não me apetece escrever. Quando sinto tristeza, apetece-me escrever, mas salvo raras excepções, guardo para mim. Ontem estava sem sentir nada de útil, sem saber o que escrever, quando recebi uma mensagem no Facebook, que tudo mudou. Iluminou-se o meu coração para este texto, e espero que por uns tempos.

Quando estava na República Centro-Africana, no início de um sábado à noite, em que até já estava com uma cerveja na mão, à beira-rio, em Bangui, recebo um telefonema de um médico, em que no meio do pânico eu só percebo com clareza as palavras “granada” e “vários feridos”. Enquanto pegava no carro, desfiz-me em telefonemas, primeiro para os responsáveis da segurança para ter autorização para ir de imediato para o hospital, e depois para a minha equipa médica, avisando que a ia buscar com o máximo de urgência.

Foi mesmo de chinelo de dedo, calções e T-shirt que entrei no maior caos que já alguma vez vi dentro de um hospital. Sangue, feridos e gente aos gritos por todo o lado. Enquanto os familiares das vítimas me agarravam e gritavam para eu tratar deste ou daquele ferido, eu fui directo, firme e sem rodeios dar ordens aos polícias e militares de AK-47 em punho, para que expulsassem toda a gente, para que conseguíssemos trabalhar. Olhando para trás, nem sei onde fui buscar tanta frieza e clareza de espírito, quando tinha as emoções a rebentar pelas costuras.

Como sempre, nestes cenários multivítimas, os que estão às portas da morte, estão a consumir quase todas as atenções. E eu intervi, sem hesitações: “Este e este são para deixar morrer… Não podemos fazer nada.” Isto não é magia, é ciência. É pragmatismo. Temos de fazer tudo pelos que ambicionamos tentar salvar, o que implica não gastar recursos e tempo, com os que eu sei que vão morrer. Isto dói, mas o desafio é tão grande, que naquele momento tenho de sobreviver às emoções, para conseguir andar para a frente.

Depois, e não sem antes analisar rapidamente todas as vítimas, um minuto por ferido chega para fazer a triagem inicial, temos de decidir qual o primeiro a levar para o bloco. Só temos uma equipa cirúrgica, só podemos operar um de cada vez. Eu e o cirurgião, um experiente senegalês que aprendi a admirar, afunilámos a prioridade em dois feridos.

Os ferimentos por estilhaços são dezenas de micro perfurações no corpo, que sem exames de diagnóstico, são muito difíceis de aferir. A única ferramenta que tínhamos, e que é extremamente útil para este tipo de situações, era o ecógrafo, mas azar dos azares, naquele dia, estava avariado. Resta-nos a clínica, as mãos no doente.

Eu e o cirurgião discordamos sobre qual o primeiro dos dois feridos deveria ir a correr para o bloco. Calmamente expusemos argumentos, e eu cedi. Decidimos começar por uma rapariga de 17 anos que se chamava H., priorizando à frente do homem que eu pensava que era o mais urgente. Eu estava errado, ele tinha razão.

Mal o cirurgião abriu o abdómen, a H. quase entrou em paragem cardíaca. Tinha uma hemorragia contida no retroperitoneu (entre a coluna e a cavidade abdominal) e ao retirar a pressão da cavidade abdominal, a sangria ficou descontrolada pois um dos estilhaços havia atingido a veia cava inferior, que é a maior veia do nosso corpo.

Transfusão, após transfusão, a certa altura chega um auxiliar médico a dizer-me que o técnico de laboratório não envia mais transfusões, se eu não preencher os “papéis”. E eu, numa voz firme e grossa, mas sem perder o controlo, mandei o recado: “Diz ao técnico do laboratório, para me enviar, , quatro unidades de sangue… Eu não posso lá ir porque tenho aqui a doente a morrer… Se ele me obrigar a ir lá, eu mato-o!” Excedi-me um bocado na linguagem, mas falarem-me de papéis quando a rapariga estava no limbo entre o mundo dos vivos e o outro, deixou-me irritadíssimo.

O sangue chegou, eu não matei ninguém, o cirurgião fez um trabalho incrível, a H. saiu com vida do bloco operatório, e nós continuámos a trabalhar pela noite dentro.

Semanas mais tarde, a H. ainda continuava internada sob os meus cuidados, essencialmente porque um outro estilhaço lhe havia fracturado um pedaço de osso da pelve que infectou. Longos cursos antibióticos, muitas lavagens e desbridamentos cirúrgicos foram necessários, num internamento muito penoso.

Num domingo de manhã, fui ao hospital para passar visita aos doentes mais complexos e, quando estou a falar com a H., começa uma discussão azeda entre a enfermeira e a H. em sango, a língua local que eu não compreendo, e a H. desata num pranto. Eu tentei por gelo na situação, pedi à enfermeira que nos desse uns minutos de privacidade, e conversei com a H..

— O que se passa querida? Porque é que estás a chorar?

— Porque a enfermeira diz que eu sou uma mentirosa e não tenho dores… — aos soluços de choro — E eu tenho muitas dores quando me fazem o penso.

— OK, OK, querida H., não te preocupes, eu vou falar com a enfermeira e esclarecer bem o plano de analgésicos...

— Obrigada Gustavo, és muito gentil… — mas cada vez chorava mais — É que eu faço 17 anos, hoje!

— Que bom H.. Parabéns, querida! —, digo, num tom animado, a ver se aliviava as nuvens pesadas de tristeza — E já recebeste muitas mensagens ou telefonemas de parabéns?

— Não, porque na explosão da granada, no concerto, eu fiquei sem o meu telemóvel, e a minha mãe não tem dinheiro para me dar outro...

Bem, foi a gota de água para eu fazer o que nunca tinha feito — granada num concerto, quase que morria, dores, aniversário sozinha no hospital, sem dinheiro para o telemóvel que a explosão levou —, quebrei uma regra minha, de ouro, que é nunca dar nada a ninguém em missão, para além do meu trabalho e do meu amor.

Perguntei-lhe a marca do anterior telemóvel, peguei no carro, gastei cento e tal euros, e consegui pôr um sorriso nesta menina, no seu dia de anos, depois de tanto sofrer.

Após seis anos do sucedido, ontem recebi esta mensagem no Facebook: “Boa noite Gustavo, sou a H., a tua paciente da República Centro-Africana, que tu salvaste a vida da explosão de uma granada. Só para te dar um alô (Juste pour te faire coucou).”

Comecei a chorar. Mas um choro bom. Um choro bonito.

Não gosto de viver das glórias do passado, porque acredito que tudo o que mais importa na vida é o que está por fazer, mas recirculações de emoções e flashbacks de tempos de paixão, numa simples forma de “alô”, iluminam o meu coração, e espero que ilumine o vosso.

Merci H., on est ensemble! (Obrigada H., estamos juntos!)

Foto

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteira

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