4.0
A ficção do trabalho de escritório
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
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Por vezes, surgem na Internet pérolas de boa reflexão fora dos locais de escrita profissional.
Um exemplo é este artigo escrito por um engenheiro de software chamado Emmanuel Maggiori. O autor conta que teve vários empregos no sector tecnológico, todos eles muito bem pagos, apesar de praticamente não ter de fazer qualquer trabalho digno desse nome.
O texto é longo, divertido e verosímil. Também não relata nada de novo. Eis uma passagem:
"Há cinco meses, fui contratado como programador de software por um dos mais prestigiados bancos de investimento. (...) Desde o início do meu emprego, há cinco meses, trabalhei cerca de três horas no total (sem contar com reuniões não focadas em Zoom, em que participei sem prestar muita atenção).
Quando entrei na empresa, estava entusiasmado. Contudo, desde que entrei apenas me deram tarefas que eram extraordinariamente fáceis de completar em alguns minutos, mas alocando para elas dias ou até semanas."
A descrição de um emprego anterior:
"(...) fui contratado como engenheiro de dados para uma das maiores empresas de telecomunicações do mundo. No ano e meio em que trabalhei para eles, apenas houve um período de duas semanas em que trabalhei na capacidade total. Tirando isso, não fiz praticamente nada nos outros 18 meses."
O autor dá também exemplos do "inchar das tarefas": um processo pelo qual uma tarefa simples é descrita como demorada e complexa, o que pode acontecer por simples desconhecimento da parte de quem pede ou precisa que seja executada, ou pela necessidade de seguir uma metodologia de trabalho (o texto tem alguns parágrafos dedicados aos devotos de agile, uma das mais conhecidas metodologias para o desenvolvimento de software):
"Uma das minhas mais recentes tarefas no banco de investimento era analisar para que poderiam ser usados alguns templates de código fornecidos pela Microsoft. Qualquer pessoa familiarizada com o desenvolvimento de software seria capaz de fazer isto em duas horas, no máximo. Contudo, na nossa sessão de planeamento, foi decidido colectivamente que esta tarefa requeria muitos dias de trabalho e duas pessoas. (...) Como esta tarefa foi atribuída a dois de nós, acabámos por dividi-la em duas partes ainda mais fáceis, uma para cada. Completei a minha parte em alguns minutos e fingi que demorou muito mais."
O fenómeno não é novidade, nem está circunscrito ao mundo da tecnologia, embora seja em boa parte impulsionado por avanços tecnológicos que tornaram muitas das tarefas feitas em escritórios mais rápidas ou desnecessárias. Há dez anos, um ensaio do antropólogo David Graeber popularizou o conceito de bullshit jobs, ou "empregos de treta" (numa tradução polida). São trabalhos que servem para pouco ou nada, e cuja inutilidade não passa despercebida a quem os tem (Graeber é um anarquista provocador, o que deve ser tido em mente ao ler o texto; o ensaio, de resto, deu origem a um livro que procura dar densidade académica à ideia, mas que vale sobretudo pelas hilariantes histórias de bullshit jobs).
Tudo isto seriam ideias antigas não fosse o facto de a tecnologia do momento – o modelo de linguagem GPT – estar prestes a elevar o fenómeno dos bullshits jobs a novos píncaros (assumindo que a sociedade não está preparada para acabar com eles e mergulhar a economia num mar de humanos desocupados).
Este mês foi disponibilizada uma nova versão da tecnologia. Sucederam-se as demonstrações de capacidade. Houve, por exemplo, quem desse à máquina a fotografia de um esboço de um site, feito com caneta e papel, e lhe pedisse para criar o site; a tarefa foi feita com sucesso razoável e com uma velocidade imbatível para um humano. Por cá, pedimos-lhe para criar questionários de escolha múltipla com base em notícias do PÚBLICO, algo que a máquina fez prontamente e sem dificuldades. E ainda lhe pedimos para "ler" um editorial recente e escrever um artigo a defender o contrário; o resultado foi satisfatório, embora longe de qualquer brilho argumentativo.
A tecnologia está a fazer caminho depressa. Na semana passada, a Microsoft anunciou a incorporação desta tecnologia no Word, Excel e demais ferramentas de trabalho de escritório. De acordo com as descrições da Microsoft, a inteligência artificial será capaz de criar documentos em Word com base em notas de reuniões; de interpretar os números numa folha de Excel e extrair as principais conclusões; ou de criar uma apresentação de Powerpoint com base em algumas indicações.
A funcionalidade está a ser testada apenas com 20 empresas. Mas, como sempre aconteceu, é uma questão de tempo até o custo se reduzir e a ferramenta se democratizar. A Google, de resto, também já anunciou a inclusão deste tipo de inteligência artificial nas suas ferramentas de produtividade de escritório.
Depois de anos em que a discussão esteve focada na substituição de trabalho mais ou menos braçal por trabalho de braços robóticos, são os trabalhos não físicos que estão ameaçados, incluindo os que requerem um elevado grau de especialização. Há uma grande quantidade de empregos – alguns dos quais já não exigiam muito trabalho – que pode estar a caminho de se tornar obsoleta. Pessoas, por exemplo, cujos trabalhos sejam fazer relatórios de dados, criar sumários executivos, preparar apresentações ou escrever minutas de contratos. Entre muitas, muitas outras.
Nesta segunda-feira, investigadores da OpenAi e da Universidade da Pensilvânia publicaram um artigo sobre o impacto do GPT no mercado de trabalho nos EUA. É razoável dizer que as conclusões são transponíveis para qualquer economia avançada.
Os investigadores fazem estimativas:
- sem software adicional ou novos desenvolvimentos, cerca de 80% da força de trabalho tem aproximadamente 10% das suas tarefas "afectadas" pelos GPT;
- 19% têm cerca de 50% das tarefas "expostas" à tecnologia;
- se forem tidos em conta outros modelos de linguagem e tecnologias adicionais, 49% podem ter "metade ou mais das suas tarefas expostas" (é considerado que há exposição directa quando se reduz o tempo de execução das actividades ou tarefas do trabalhador para pelo menos metade).
Relevante é também o tipo de trabalhos afectados: aqueles em que os salários são mais elevados e aqueles que têm mais barreiras à entrada (ou seja, os que requerem uma maior preparação e especialização). Além disto, os trabalhos "fortemente dependentes da ciência e pensamento crítico têm uma correlação negativa com a exposição, enquanto as competências de programação e de escrita estão positivamente associados à exposição".
Tudo isto é extraordinário. Mas, se tivermos em consideração os saltos que as tecnologias de informação deram nas últimas décadas, o extraordinário é que quem trabalha frente a um computador esteja, no geral, oito horas por dia, cinco dias por semana, em frente a um computador a trabalhar. A realidade, como Graber descreveu, é que isto não acontece.
Nos próximos anos, a ficção da azáfama de escritório só vai tornar-se mais óbvia. Mas é possível que continuemos durante muito tempo a fingir que acreditamos nela. Fazer o contrário levantaria demasiados problemas.