O Coração Ainda Bate. Negros hábitos
Inês Meneses escreve sobre a Igreja: os erros do passado ainda são os do presente.
Entre amigos, peço a todos que falem das suas experiências com a Igreja. E no momento em que começo a escrever esta crónica, o meu telemóvel, em modo aleatório, atira-me com Nick Cave a dizer que não acredita num deus intervencionista. Neste momento, nem deus é chamado para a conversa. É mundano e triste o que temos para partilhar.
A minha mãe já tinha deixado de ir à igreja há muito tempo. Revoltava-se contra a hipocrisia do que via. Deixou de querer fazer parte dos rituais que nutriam a instituição. Assim, todos deixámos de ir à missa, o meu pai terá sido o último a fazê-lo. Hoje, nem o ouço a falar disso, sabendo que os dois, talvez pela educação que tiveram, foram pessoas de Fé. Eu também sou uma pessoa de Fé, mas na humanidade.
Quando, há dias, li em pormenor alguns relatos apurados pela comissão que tomou conta deste caso, tive vontade de vomitar. Não há exagero no que estou a contar. Foi física a repulsa, para além do que me ficou gravado na memória e que já dificilmente vou conseguir apagar. As coisas más ficam. Ai de algum deus que nos livre da memória que separa os íntegros dos outros.
Na aldeia, todos eram chamados a pagar a sua côngrua, um contributo para o pároco viver sem problemas. Para os mais néscios, um dever moral e religioso dos crentes, que assim abasteciam o homem do hábito negro. O padre, o médico, o professor? Talvez esta trilogia já não nos faça totalmente sentido. Tenho demasiado respeito por alguns professores e por outros tantos médicos.
Lembro-me de a minha mãe ir incomodada pagar essa côngrua e de isso ser sempre tema de conversa. Não era justo pagar, muito menos, do outro lado, exigirem saber quanto ganhava o meu pai, para estar de acordo com a nossa contribuição. Assim, muito cedo, passei da miúda da catequese para aquela que questionava tudo o que via. Perguntava-me todos os dias porque é que aquele homem não se podia casar, se vivia com a mulher que dizia ser sua empregada. Percebem os vários erros aqui contidos? Chamar empregada à mulher com quem ele partilhava casa. E ela permitir. Lembro-me bem dela: pouco brio, um olhar que poucas vezes se erguia. Talvez descontente com a sua condição incompleta.
Muito miúda percebi as incongruências de uma certa igreja. Tudo o que estudei sobre a figura de Jesus foi pela minha incansável curiosidade, curiosidade que é temida pela Igreja. Quanto mais quiseres saber, mais vais descobrir e mais vais pôr em causa esse poder oco da instituição.
Quando hoje leio ou ouço as reacções dentro da Igreja ao que aconteceu durante décadas, percebo como sempre vi o que parecia vedado aos outros. Mas é o medo que nos tolhe. O medo e, sem dúvida, a ignorância. Como pudemos, miúdos, acreditar que aqueles homens sem vida alguma tinham poder para decidir o que é certo ou o que é errado?
Quando um desses senhores de colarinho engomado veio dizer que “também há papás e mamãs abusadores”, atirando para todos nós a possibilidade da falha (e que falha inominável), questiono tudo: a sanidade dos crentes, do poder judicial, do Estado que, sendo laico, sempre se vergou perante a Igreja.
Serem afastados os homens (não há mulheres aqui, lembram-se de que a Igreja lhes veda a entrada?) que abusaram sem piedade, sem racionalidade, sem um pingo de humanidade de gente indefesa e sem informação, não chega. Todas estas vítimas merecem ter as suas feridas honradas. Do trauma nunca se livrarão. Esse trauma tem um rosto, uma voz e um nome, umas mãos abjectas, um corpo que nunca esteve em espírito com o seu deus.
Se estes homens, velhos ou novos, não forem condenados pelo que fizeram, estaremos a falhar, mais do que nunca, como humanos. Chegou a altura de lhes mostrarmos que na nossa falibilidade somos muito mais perfeitos do que eles.
Não é deus que me protege, mas os meus actos em consciência.
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