Psicólogas criam jogo para prevenir abuso sexual de crianças em Cabo Verde

Picos e Avelã à Descoberta das Ilhas do Tesouro foi desenvolvido pelas psicólogas portuguesas Rute Agulhas e Joana Alexandre, a pensar nas crianças cabo-verdianas entre os 7 e os 12 anos.

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Ilha do Sal, em Cabo Verde ADRIANO MIRANDA/Arquivo

Duas psicólogas portuguesas, docentes do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), desenvolveram um jogo de tabuleiro adaptado a Cabo Verde para ajudar a prevenir casos de abuso sexual de crianças no arquipélago.

“Da nossa experiência em Portugal, e com base na evidência científica nesta área, sabemos que trabalhar temáticas complexas através de estratégias lúdicas é sempre o melhor ponto de partida, explicou à Lusa Rute Agulhas, uma das autoras e especialista que integra também a Comissão do Patriarcado de Lisboa. “Depois, a criação de oportunidades de debate ou de discussão activa acaba por ser um mecanismo facilitador para a aquisição de aprendizagens sobre aspectos que visam a prevenção do abuso sexual.”

Picos e Avelã à Descoberta das Ilhas do Tesouro foi desenvolvido pelas psicólogas Rute Agulhas e Joana Alexandre, a pensar nas crianças cabo-verdianas, entre os 7 e os 12 anos, e responde a um pedido da Associação Crianças Desfavorecidas de Cabo Verde (Acrides).

O projecto vai ser apresentado na ilha do Sal, nesta quarta-feira, 8 de Março, e aborda nove temas transversais à violência sexual, inspirados nas nove ilhas habitadas de Cabo Verde: entre os quais, o corpo e partes privadas, segredos, emoções, a capacidade de a criança dizer sim e não”, ou de pedir ajuda quando confrontada com situações de abuso sexual.

Para Rute Agulhas, é necessário possibilitar às crianças falar dos segredos, sejam bons ou maus, dos toques adequados e desadequados, mas também de emoções, do corpo, da Internet "e, claro, saber pedir ajuda.

No entanto, a especialista revelou que houve dois temas considerados essenciais pelo contexto do país: “Os direitos das crianças e a violência baseada no género, que têm merecido menos atenção, de uma forma geral, nos materiais e programas de prevenção do abuso sexual.

"Este jogo em concreto aborda ainda um outro tema — competências sociais e emocionais. Um tema que a literatura identifica como especialmente importante neste contexto e que envolve, por exemplo, a regulação das emoções, a resolução de problemas, a resiliência, a amizade ou a empatia", sublinha ainda Rute Agulhas, também perita no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses.

Segundo dados do Ministério Público de Cabo Verde, no ano judicial 2021/2022, terminado em Julho passado, deram entrada nos tribunais do país 776 crimes sexuais, mais 315 face ao período homólogo anterior, dos quais 32,2% foram relativos a abusos sexuais de crianças e 6,8% a abusos sexuais de menores entre 14 e 16 anos.

À entrada do actual ano judicial (2022/2023), estavam por resolver 1076 processos envolvendo crimes sexuais em todo o país, 321 dos quais relativos a abusos sexuais de crianças, 57 de abusos sexuais de menores entre 14 e 16 anos, sete de exploração de menor para fins pornográficos e cinco de sexting contra menor.

A criação do jogo envolveu a editora Ideias com História e representa o culminar de vários meses de trabalho das duas psicólogas em Cabo Verde, incluindo acções de formação a forças policiais, magistrados, professores, médicos, psicólogos e assistentes sociais nas ilhas de Santiago e São Vicente.

As duas portuguesas conheceram a organização não-governamental Acrides numa conferência online sobre a Justiça Amiga das Crianças, em 2021, e, desde então, estreitaram uma relação, também com o país, que até então não existia. "É muito fácil gostar de Cabo Verde. As pessoas estão muito receptivas para aprender e reflectir sobre as práticas existentes", sustenta Joana Alexandre.

O projecto em Cabo Verde baseia-se no que as duas profissionais já fazem em Portugal: "A aposta na prevenção universal do abuso sexual é, para nós, o ponto de partida — como diz o ditado, mais vale prevenir do que remediar."

Empoderar crianças

"Uma verdadeira aposta na prevenção primária significa empoderar as nossas crianças e jovens, transmitindo-lhes conhecimentos que lhes permitam identificar uma alegada situação de risco/abuso sexual e a promover competências para que saibam pedir ajuda", assevera Joana Alexandre, salientando igualmente a importância de pensar de forma "holística e sistemática" a "prevenção primária do abuso sexual" e envolvendo crianças e adultos.

Ainda assim, Rute Agulhas enfatiza que a realidade portuguesa "nada tem a ver com a cabo-verdiana", onde "não há muitos dados estatísticos disponíveis e são poucos os estudos científicos sobre abusos sexuais de crianças".

E reforça: "Todo o trabalho de prevenção que temos vindo a fazer pode e deve ser adaptado pela Comissão a contextos religiosos, nomeadamente a crianças que frequentam a catequese e também nos colégios. É uma forma de prevenir o abuso sexual, promovendo competências que ensinem as crianças a reconhecer e a lidar com eventuais situações de perigo."

As duas docentes e investigadores do ISCTE começaram a trabalhar juntas no desenvolvimento de acções e cursos de formação focadas na prevenção do abuso sexual de crianças em 2015, colaborando regularmente com escolas, associações de pais, comissões de protecção de crianças e jovens, câmaras municipais e forças de segurança em todo o país.

Em 2016, criaram o primeiro jogo de tabuleiro As Aventuras do Búzio e da Coral e, um ano mais tarde, lançaram o Picos e Avelã à Descoberta da Floresta do Tesouro, tendo ambos contado com o envolvimento dos alunos do mestrado em Psicologia Comunitária e Protecção de Crianças e Jovens em Risco do ISCTE.

Estão ainda a ultimar o jogo Vila Segura, destinado a jovens entre os 11 e os 14 anos e que tem como objectivos aumentar os conhecimentos dos jovens sobre o abuso sexual de crianças e capacitá-los para saberem lidar com possíveis situações de maus-tratos.