Viver numa comunidade é cada vez mais exigente: temos de ser capazes de seguir os valores e a cultura de um país e, ao mesmo tempo, identificar aquelas regras que o nosso “eu” não consegue cumprir por serem demasiado antagónicas com aquilo que acreditamos ser a verdade. Importa salientar o papel da escola nesta dicotomia e reforçar que é desejável ensinar as crianças e os jovens a crescer, para que se tornem “animais políticos”, como diria Aristóteles no livro IX da obra Ética a Nicómaco. Para isso, é preciso que a escola trabalhe as diferentes literacias, uma das quais a literacia matemática.
A ideia de literacia matemática define-se, segundo a OCDE, como a capacidade de raciocinar, interpretar e usar matemática na resolução de problemas, o que é crucial para viver e actuar socialmente de modo informado, contributivo, autónomo e responsável.
A matemática é uma linguagem universal, cumulativa e guarda um grande segredo: a abstracção.
É a única linguagem que contém representações e simbologia introduzida por povos como os sumérios, maias, romanos e árabes, que permitem que todos os indivíduos em todo o mundo consigam falar o “matematiquês” da mesma forma, sem ser necessário recorrer a grandes traduções… É uma beleza!
É cumulativa, pois aprendê-la compara-se a subir uma escada, em que se parte do real até ao abstracto. Este percurso é feito degrau a degrau e a escola deve ser capaz de dar a mão a cada aluno nesta subida. O trabalho da matemática nos primeiros anos é crucial, é a base de toda a construção. Nesses anos, os degraus são pequenos, o que exige do professor constantes diagnósticos do trabalho matemático da criança para garantir que não se passou à frente nenhum degrau (ou que não foi subido com segurança), pois pequenos tropeços nos 1.º e 2.º ciclos podem conduzir a aprendizagens pouco consolidadas e podem comprometer a aprendizagem de conceitos mais complexos.
Pensa-se que o grande segredo da matemática é a abstracção, uma vez que os processos do pensamento vão para além do real, e que o grande segredo do professor no ensino da matemática é saber quando aluno já está capaz de dar o salto do real para o abstracto, ou seja, de abstrair o observável.
A escola deve dotar todos os alunos de autonomia no trabalho matemático para lhes permitir sentir as emoções e o prazer que esta ciência pode trazer. Os diferentes ritmos de aprendizagem não podem ser ignorados, mas com estratégias de diferenciação é possível que a matemática seja para todos.
Este é um princípio assente em vários currículos do mundo e, desde 2022, em Portugal, nas Novas Aprendizagens Essenciais de Matemática (Ministério da Educação, 2022), que assumem que “ninguém pode ficar excluído da matemática e que cada um deve ter oportunidade de ser sujeito a experiências de aprendizagem matematicamente ricas e desafiantes”. Além disso, “matemática para todos” é o tema de 2023 para a comemoração do Dia Internacional da Matemática, proposto por Marco Rotairo das Filipinas.
“Creio que a Matemática deveria ser para todos porque todos nós temos capacidade matemática, mas apenas numa extensão e grau diferentes. Além disso, devemos deixar que todos desfrutem das maravilhas da matemática. A noção de que a matemática é apenas para os dotados e os génios deve mudar”, argumentou.
Mas, actualmente, em Portugal, a Matemática pode ser para todos? Não!
As crianças são seres individuais com ritmos de crescimento diferentes. Até o desenvolvimento cerebral das crianças é desigual, logo o caminho entre o real e o abstracto que cada uma trilha dos factos reais até atingir a abstracção é muito díspar.
Apesar de já se terem realizado muitos estudos sobre o desenvolvimento e o crescimento da criança, e de os autores dos programas de Matemática terem em conta estas investigações, as crianças são únicas e por isso a sua aprendizagem matemática também o é. Assim, é exigido ao professor de matemática observações directas constantes do trabalho matemático e diagnósticos rigorosos e também constantes do trilho que cada aluno traça.
Em Portugal, o número de alunos por turma, a extensão dos programas e a forma como a escola está organizada pode dificultar que o professor seja capaz de fazer este trabalho… O que faz com que a Matemática, em Portugal, ainda não seja para todos.