Somos ricos, por decreto e por sorte, à nascença. Sejam gratos.
Devemos sentir orgulho ou sorte por ser portugueses? Todos nós somos portugueses por acaso, e não pelo destino traçado nas estrelas. E, por acaso, nascemos dentro dos 5% mais ricos do planeta.
Tudo é relativo, tudo é acoplado a uma perspectiva, tudo depende mais da forma como olhamos do que daquilo para que estamos a olhar. Esta semana, por mero acaso, fui confrontado com pensamentos que me assaltam as ideias e que na minha humildade me parecem vitais que se tragam cá para fora.
Num curto espaço de tempo, dei por mim a discutir de uma forma mais ou menos acesa, com dois amigos em dias diferentes. O primeiro soltou aquele jargão comum a qualquer bêbado de uma tasca — “os políticos são todos iguais, tudo farinha do mesmo saco...” —, em tom altamente crítico e cheio de certezas absolutas baseadas em casos e casinhos.
Contrapus com o que me parece óbvio: “Há pessoas fantásticas na política, genuinamente motivadas por lutar por aquilo que acreditam, e que ainda têm que ser insultadas por todos os idiotas do país para fazer o seu trabalho”. E ainda acrescentei: “Se achas que fazes melhor, vai para lá tu. Se não vais, ao menos respeita quem lá está.” Não obstante, claro, a legitimidade de criticarmos a pessoa A, B ou C, se houver fundamentos para tal. Mas generalizar este tipo de ideias é matar a democracia, e dar gasolina aos discursos antidemocráticos.
Uns dias mais tarde, estava com o coração apertado a ver as notícias dos refugiados/migrantes mortos no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa. Marcou-me a frase de um homem que me parecia árabe ou afegão de feições e sotaque a dizer: “Se tivéssemos olhos azuis ou verdes, vinham-nos salvar”, enquanto chorava a morte de familiares que morreram ao seu lado, segundo ele, porque o resgate e salvamento chegou muito tarde.
Enquanto pensava no tanto de verdade que aquela frase contém em si, liga-me um amigo em que entre outras coisas começa a dizer: “O burro do Costa, a culpa é do Costa... Está tudo mal... Sete anos de Costa... O Costa devia desaparecer...”, e por aí fora.
Esta confrontação de queixume vazio mata-me. E por isso perguntei-lhe: “Tu já viste a sorte que tens em ser português? Falta-te realmente alguma coisa? (é que não falta!) Ainda não percebeste que de todos os bens que te pertencem o teu passaporte português é de longe a tua maior riqueza?”
Não estou com isto a fazer qualquer defesa ao primeiro-ministro, porque nem sequer levou o meu voto. Mas este “bota abaixismo”, e pior ainda, vindo de pessoas que têm diferenciação académica e a quem não lhes falta nada em termos económicos e sociais, é algo que me incomoda.
Devemos sentir orgulho ou sorte por ser portugueses? Todos nós somos um acaso genético, porque os espermatozóides e os óvulos dos nossos pais são únicos e irrepetíveis. Todos nós somos portugueses por acaso, e não pelo destino traçado nas estrelas. E, por acaso, nascemos dentro dos 5% mais ricos do planeta.
Sinto algum orgulho em ser português que se prende com a solidez da democracia, com a liberdade, com a segurança, e com os afectos construídos com a minha família e amigos que, no fundo, são a minha noção de lar e de pátria. Mas sinto, acima de tudo, sorte, muita sorte, por não ter ninguém da minha família ou amigos a ter que atravessar o Mediterrâneo em botes, o México a pé, ou fugir da Ucrânia... Ou o pior e mais doloroso que eu já vi em termos de migrações: etíopes aos milhares, que atravessam o Mar Vermelho para o Iémen, para depois atravessar a pé este gigante país que sofre horrores de guerra, de fome e de tráfico humano, com o objectivo de chegarem às esmolas dos árabes ricos em petróleo, mais a norte na península.
Quem nasceu rico não tem a noção de que o é, porque para esses a vida “normal” é tida como sendo assim, e despreza a existência dos pobres. E nós, portugueses, por sorte, nascemos ricos, muito ricos.
Somos ricos, por decreto e por sorte, à nascença, e por isso sejam gratos sabendo que a nossa maior riqueza é o que está escrito no passaporte: Portugal. Com o bónus de ser uma riqueza eterna, que ninguém nos pode tirar.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras