Linha de Apoio à Insónia

Se quiser entrar em pânico a achar que a sua casa está a ser assaltada, prima 7

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"Vou morrer, um dia vou morrer. E esse dia pode ser hoje, é um dia tão válido como qualquer outro" Ivan Oboleninov/Pexels

Bom dia, bem-vindo à sua insónia. Esforçamo-nos por lhe prestar o atendimento mais personalizado e que vá ao encontro das suas necessidades. O seu contributo é importante para nós. Obrigado por ficar acordado connosco.

Se quiser revirar-se na cama e pensar acerca de coisas absolutamente irrelevantes, prima 1.

Se quiser desesperar e considerar cenários hipotéticos horríveis e tenebrosos, prima 2.

Se quiser fazer uma contabilização acerca das horas de sono de que ainda dispõe, prima 3.

Se quiser imaginar como será o seu funeral e quem vai ficar mais triste e chorar mais, prima 4.

Se quiser concentrar-se no barulho do relógio da cozinha, prima 5.

Se quiser pensar acerca de todas as tarefas que tem para fazer e sentir uma culpa paralisante, prima 6.

Se quiser entrar em pânico a achar que a sua casa está a ser assaltada, prima 7.

Se quiser lembrar-se dos momentos mais embaraçosos da sua vida e passar por uma vergonha insuportável, prima 8.

Se quiser pensar nos rumos diferentes que a sua vida podia ter tomado caso tivesse tomado outras decisões, prima 9.

Se quiser falar com um assistente, prima *

Para voltar atrás, prima #

2. A Terceira Guerra Mundial vem aí. Devia começar a pensar em fazer um bunker. Talvez não seja assim tão descabido. Talvez chame todas as pessoas próximas para construirmos uma espécie de bunker conjunto. Mas, se as pessoas próximas chamarem todas as suas pessoas próximas, o bunker fica cheio e tem de ser do tamanho de Portugal. Se calhar vamos ter de ir para o metro. Todos no metro. Como na Ucrânia, no início. Se calhar vai começar a guerra nuclear. Ou, talvez, vá ser uma guerra química. Se calhar vêm mesmo aí os aliens. Ou uma epidemia de fungos, como no Last of Us. Tenho de arranjar abastecimentos. Tenho de pensar em esconderijos. Sim, pensar em esconderijos e não naquela velhota com tentáculos a saírem da cara…Voltar atrás, voltar atrás! Cardinal, cardinal # # # # # # #

1. No Brasil comem puré com arroz e eu não estava bem preparada para este debate. Quando afirmei que isso era um absurdo, disseram-me que também se come batata com arroz. E têm razão. Qual era a alcunha do meu professor de Educação Física na primária? Não me lembro qual era. Era fundamental lembrar-me disso agora. E porque é que no Harry Potter deixaram de contar os pontos e de fazer a festa das equipas depois do primeiro livro? #

3. Se adormecer agora, durmo cinco horas e meia. Acho que agora, agora, não consigo, mas se adormecer daqui a uma hora, durmo quatro horas e meia. A partir daí é que já inviabiliza totalmente o meu dia de amanhã. De amanhã, ou seja de hoje. Sim, amanhã já é hoje. Amanhã já é hoje e eu ainda não dormi nada. Mas, talvez consiga pôr o despertador para um bocadinho mais tarde, isto, claro, se elas não acordarem antes. #

5. Tic, tac, tic, tac, tic tac, tic tac. tic tac #

4. Um dia, toda a gente que conheço vai morrer. Eu também. Vou morrer, um dia vou morrer. E esse dia pode ser hoje, é um dia tão válido como qualquer outro. Esta dor de cabeça pode ser já o primeiro sinal. Todos os meus amigos vão encontrar-se à noite ao pé da igreja e abraçar-se com saudades minhas. Será que alguém não vai? Fico ofendida. Mesmo morta, fico ofendida. Se calhar tenho de enviar mensagens só para saberem que não é por estar morta que não fico ofendida. Já estou. Espero que os meus pais se recomponham. Espero que eles saibam que eu não quero que eles deixem de viver.

Chorem um bocado, mas não se vão abaixo. Mas também não se recomponham demasiado depressa. E os meus amigos, que chorem mas que não deixem de aproveitar. Mas também não vão logo sair à noite. Vou julgar. Vou julgar do além-mundo. De que será que vão falar? Gostava de ser mosca. Se calhar posso ser, volto como mosca. Se aparecer uma mosca, não a matem. Provavelmente sou eu. #

5. Tic, tac, tic, tac, tic, tac #

6. O último dia para validar as facturas nas finanças foi ontem ou hoje? E a renovação das matrículas das escolas, preenchi mas acho que não enviei. Será que enviei? Tenho de responder às mensagens que ficaram por ler. Dei os parabéns à minha tia? Tenho de rever o texto. Bolas, não tirei os bifes de frango para descongelar! #

9. Devia ter feito os exames de Inglês e por esta altura poderia saber escrever e falar bem em inglês e aberto muito mais oportunidades. E talvez devesse ter-me dedicado ao TikTok. O TikTok afinal bombou e eu não entrei a tempo e agora perdi a onda. E entrar agora vai ser estranho, como quando entrei na aula de Zumba e já toda a gente sabia a coreografia e eu só atrapalhava e dava encontrões e a professora dizia de forma condescendente que não tinha mal e que a turma acolhia, mas eu não senti que a turma me acolhesse, e foi tanta pressão que nunca mais voltei. #

5. Tic, tac, tic, tac, tic, tac #

2. De certeza que vem aí um sismo de proporções assustadoras e tenho de pensar no plano de resgate. Tenho de ir primeiro à escola das minhas filhas, a acelerar. #

8. E aquela vez em que estava ao telefone com uma brasileira e ela dizia “pois não”. E eu perguntava “pois não o quê?”, tempos a fio, até perceber que “pois não” é uma forma de dizerem “sim”. Ou quando estava a marcar uma coisa por mensagens no Brasil e responderam “demorou” e me indignei e disse: “Não, não demorei, respondi logo a seguir”. E “demorou” afinal era uma expressão de concordância. Ou quando fui fazer análises à urina e a senhora da recepção pôs o frasco com a minha urina no balcão, de forma a que toda a gente da sala pudesse ter uma visibilidade directa, como um cálice num altar. Ou a vez em que…#

7. Foi o camião do lixo ou foi alguém a arrombar a porta? O camião do lixo não costuma vir a esta hora. Vou tapar-me mais com o cobertor para afastar os ladrões. Será que tenho alguma janela aberta? Ou foi a porta de entrada? Se assim foi, já entraram. Já entraram e vêm directamente ao meu quarto. É o fim.

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