Bruce Willis tem demência. O que são estas perturbações neurocognitivas?

Existe um conjunto de patologias, onde se insere a demência frontotemporal, com que foi diagnosticado o actor de 67 anos. Não há cura, mas a prevenção é fundamental e começa com pequenos gestos.

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O actor Bruce Willis tem 67 anos e, em Março passado, tinha sido diagnosticado com afasia HENRY NICHOLLS/Reuters

A notícia chegou nesta quinta-feira: o actor Bruce Willis tem demência. Depois de ter sido diagnosticado com afasia, doença que leva à parcial ou total perda da capacidade de expressar ou compreender a linguagem, em Março de 2022, a estrela da saga Die Hard recebeu agora um diagnóstico mais completo: demência frontotemporal. É um prognóstico em tudo semelhante ao que recebem milhões de pessoas todos os anos. Mas, afinal, o que é a demência? Pode ser tratada? E, acima de tudo, pode ser prevenida?

O que é?

Só em Portugal, uma em 200 mil pessoas tem uma demência, com tendência para duplicar até 2050. De acordo com dados da Alzheimer Europe, Portugal é um dos quatro países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com maior prevalência de casos destas doenças entre a população.

Mundialmente, de acordo com a associação Alzheimer Portugal, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que existam 47,5 milhões de pessoas com demência.

Mas, o que é a demência? O Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, publicado em 2013, classifica-a como “uma perturbação neurocognitiva”, que se manifesta na “deterioração de domínios cognitivos, de sintomas psicológicos e comportamentais”, com “impacto directo na funcionalidade”.

A demência é diferente do Alzheimer?

Na verdade, o termo demência refere-se a um “leque muito alargado de doenças”, que inclui o Alzheimer, a demência com maior prevalência no mundo inteiro, como explicava ao PÚBLICO Lia Fernandes, psiquiatra do Hospital de São João, no Porto. “Logo a seguir vêm as demências vasculares, em número ainda elevado, e as demências mais raras, como a de corpos de Lewy, a demência frontotemporal e a ligada à doença de Parkinson, entre outras.”

A demência frontotemporal (DFT) é a que afecta o actor Bruce Willis, que tinha sido diagnosticado com afasia. Além das dificuldades na fala, escrita ou compreensão, a doença pode provocar também perda de coordenação motora ou mudanças na personalidade. Este tipo de demência afecta mais o comportamento e a linguagem, e menos a memória em comparação com a doença de Alzheimer.

Metade das pessoas diagnosticadas com DFT têm história familiar da doença, explica a associação Alzheimer Portugal. “As pessoas que herdam este tipo de demência apresentam frequentemente uma mutação no gene da proteína tau, no cromossoma 17, o que leva à produção de uma proteína tau anormal”, esclarece a organização no seu site. Além do factor hereditário, não há outra explicação para o seu surgimento.

Quais os sintomas?

De acordo com a psiquiatra Lia Fernandes, o principal sintoma a que se deve estar atento são os pequenos esquecimentos — por exemplo, esquecer-se onde colocou os óculos, o relógio ou as chaves. Estes são pequenos detalhes que podem manifestar-se noutras perdas de memória maiores, como deixar as bocas do fogão ligadas ou ir ao supermercado, chegar lá e esquecer-se do que ia buscar.

O principal factor de risco é a idade, sobretudo a partir dos 65 anos — Bruce Willis tem 67. Contudo, lembra a Alzheimer Portugal, é importante distinguir o que são as diferenças entre o que é normal no envelhecimento e os sinais de alerta da doença. Por exemplo, com a idade, é normal esquecer-se por instantes do nome de alguém ou de uma palavra, mas “recordá-los posteriormente”. Na demência, “perde-se progressivamente a informação que conhecia, como dados históricos ou políticos”.

Os doentes também sentem alterações na parte comportamental, avisava a psiquiatra do Hospital de São João. Sentem-se muitas vezes agitados, irritam-se com facilidade e podem tornar-se agressivos, prejudicando o quotidiano. “Começam por perder as actividades de vida diária: sair à rua, ser capaz de fazer as compras, saber se já deitaram ou não sal na comida, este é logo um dos primeiros sinais. Tudo isto vai-se degradando progressivamente e depois perdem as funções básicas: o lavar-se, pentear-se, vestir-se, tomar banho.”

Como se faz o diagnóstico?

Ao contrário de outras patologias físicas, não há propriamente um exame capaz de diagnosticar uma demência e a maioria das pessoas é diagnosticada numa fase moderada ou avançada da doença. Muitas não chegam mesmo a receber um diagnóstico.

Para diagnosticar uma demência, o neurologista ou o psiquiatra recorrem a um “processo de exclusão”, explica a Alzheimer Portugal. Ou seja, excluem-se outras causas que possam ser responsáveis pelos sinais e sintomas apresentados. Para isso, especialistas pedem alguns exames para despistar outras doenças. Depois, é feita uma avaliação neuropsicológica para avaliar as funções intelectuais.

Na velhice, há mais mulheres diagnosticadas com demências, mas a explicação é aparentemente simples: são elas, normalmente, a ter maior longevidade. Contudo, também é no sexo feminino que se verifica maior prevalência da depressão no decorrer da vida e há uma associação entre as duas perturbações, diz a psiquiatra Lia Fernandes. Cerca de 40% das depressões evoluem para demência.

Há muita resistência por parte dos doentes em consultar o médico, sobretudo na velhice. O mais simples, aconselha a associação, é encontrar outro motivo para levar estas pessoas ao médico, por exemplo, dizendo que se trata de uma consulta de rotina para avaliar a tensão arterial e rever a medicação.

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Nuno Ferreira Santos/Arquivo

Tem cura?

Não há uma cura milagrosa para a demência ou tratamento farmacológico para a tratar — alguns fármacos ajudam apenas a atenuar os sintomas, mas sem impedir a sua progressão —, apesar dos inúmeros estudos feitos nesse sentido.

Todavia, é possível viver com qualidade, não só com recurso à medicina, mas também com a ajuda de pequenos passos, como a prática de exercício físico controlado e orientado por profissionais, que inclua actividades que simulam tarefas do dia-a-dia. A Alzheimer Portugal fala também da importância da estimulação cognitiva, que dizem ter benefícios no humor dos doentes e até ao nível da memória.

Cantar também tem sido apontado como uma “actividade simples, mas eficaz”. A musicoterapeuta Marisa Raposa, explicava ao PÚBLICO, que nesta terapia se “utiliza a música como veículo para ajudar o utente a manter, melhorar e/ ou restabelecer funções cognitivas, comunicativas, emocionais e sociais”.

O que podem as famílias fazer?

São esses pequenos gestos que estão nas mãos das famílias, que pouco mais podem fazer. O contacto, o afecto e a empatia são muitos importantes para estas pessoas e é nisso que os cuidadores devem apostar, sem esquecer a sua própria saúde mental.

A mulher de Bruce Willis, Emma Heming, descrevia um sentimento que muitas famílias sentem: “A minha tristeza chega a ser paralisante, mas estou a aprender a viver ao seu lado.” Numa entrevista, contou que tinha colocado as necessidades da família à frente das suas, o que não faz dela “qualquer tipo de heroína”. E deixou um apelo: “Alguém me disse, não há muito tempo, que quando se cuida demais de alguém, acaba-se por não cuidar de si próprio."

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O actor Bruce Willis e a mulher Emma Heming, em 2013 Reuters

Em formas mais avançadas da demência, a maioria das pessoas precisa de acompanhamento total e alguns têm de ser transferidos para unidades de cuidados especializados. Mas qualquer que seja o estado do doente, em casa ou numa instituição, é importante manter a comunicação, já que os doentes mantêm a sua capacidade de responder a emoções.

Como se previne?

Apesar de não existir cura, a prevenção é essencial, até porque 40% dos casos podem ser prevenidos, de acordo com um estudo de 2017. Para atrasar estes processos neurodegenerativos, é fundamental “atacar” na infância e manter esses comportamentos ao longo da vida, através da leitura e da estimulação intelectual. “É como se abríssemos auto-estradas dentro do nosso cérebro. Se tudo isto não nos permitir prevenir na totalidade, permite-nos adiar o desenvolvimento destas doenças”, compara a psiquiatra Lia Fernandes.

Alguns passatempos podem ajudar, como fazer sudoku ou palavras cruzadas. A Alzheimer Society of Canada também propõe que se mantenha um diário, se participe em conversas e se aprenda coisas, enquanto fala com pessoas novas. Fazer algo pela primeira vez que se ache que possa ser difícil também é importante, porque funciona como o levantamento de peso cognitivo e potencia a flexibilidade mental e força.

Como em tudo, um estilo de vida saudável, sem obesidade, hipertensão, tabagismo e sedentarismo, também é fundamental na prevenção de qualquer patologia. Já diziam os romanos: mente sã em corpo são.

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