Solar Bragançano: venha o cozido, que a Quaresma depois pede jejum e abstinência

Associado à identidade do Nordeste Transmontano, o butelo com casulas é um dos mais típicos cozidos de Carnaval. No Solar Bragançano, em Bragança, é ainda feito à lareira e em potes de ferro.

neg - 13 fevereiro 2023 - solar bragancano - restaurante tradicional em braganca - desiderio e ana maria
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Ana Maria e António Desidério, autores e mentores do Solar Bragançano NELSON GARRIDO
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Solar Bragançano Nelson Garrido
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Solar Bragançano Nelson Garrido

Era nos três dias que antecedem o início da Quaresma – na Quarta-Feira de Cinzas que se festejava o Entrudo. Dias de excessos, desmandos e desregramento, que desembocavam num período seguinte de rigoroso jejum e abstinência. E se “no Entrudo vale tudo”, também “no Entrudo come-se tudo”, como se dizia em relação aos três dias em que ao alheamento das regras sociais se somavam também as comezainas sem limites.

Usos e rituais de raiz rural e associados também à religiosidade vigente. “Em tempos de jejuns e abstinências levados a sério, o que estava em causa era a Quaresma que havia de vir, antecipadamente condenada. Em algumas regiões era mesmo encenada uma luta entre o gordo Entrudo e a magra Quaresma (…), mas no fim era sempre a Quaresma que ganhava a batalha e o Entrudo arrastado pela morte, realizando-se o seu enterro depois da leitura do respectivo testamento”, contam Maria de Lourdes Modesto e Afonso Praça no seu primeiro volume de Festas e Comeres do Povo Português.

Capturado que foi o Entrudo, e o seu espírito irreverente, desordeiro e caceteiro, pelo moderno Carnaval de faceta urbana, preservam-se, contudo, as tradições dos copiosos cozidos associados à matança. Em muitos casos promovidos até de forma quase oficial, celebrando as gentes e a identidade local, como acontece por estes dias em Bragança.

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Solar Bragançano NELSON GARRIDO

A cidade que associa o Festival do Butelo e das Casulas ao Carnaval dos Caretos aproveita também para apresentar a candidatura na categoria Gastronomia à Rede de Cidades Criativas da UNESCO. Típico e exclusivo do Nordeste Transmontano, o butelo é um enchido de fumeiro que se faz pela matança, aproveitando de forma exímia algumas das partes pobres, como pedaços de ossos das costelas, do espinhaço, e do rabo. São temperados em vinha de alhos, com colorau, laranja, malagueta e sal e depois fumados na tripa larga e folhosa do porco.

Na região de Bragança, a tradição é fazer um cozido com casulas (também lhe chamam cascas), que são vagens com feijão secas e preservadas especificamente para este cozido. Fomos prová-lo ao Solar Bragançano, bem no centro da cidade, um espaço ímpar onde por respeito à tradição e qualidade se preserva a cozinha de fogo. A lareira e os potes de ferro como elemento essencial da preparação gastronómica.

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Solar Bragançano, Cozido de Butelo nelson garrido

A par do butelo, o cozido junta ainda salpicão, chouriço, focinheira, orelha e pé de porco. Com aquelas gorduras, cartilagens e gelatinas viciantes, que tornam o caldo espesso e infinitamente saboroso. Uma gordura adocicada que intensifica o paladar, valoriza a acidez dos grelos, a textura absorvente da batata, a harmonia saborosa que tudo envolve.

Associado ao Carnaval dos Caretos e no âmbito do Festival do Butelo e das Casulas, este cozido (25€ a dose) vai manter-se na oferta diária até ao final do próximo fim-de-semana, dia 26 de Fevereiro. Mas é também uma das referências de temporada deste restaurante que está prestes a assinalar meio século de dedicação à essência da cozinha transmontana.

Repositório vivo do receituário da tradição, a cozinha do Solar respeita também a sazonalidade de receitas e produtos, que procura em criadores, produtores e agricultores locais. Dos presuntos de bísaros às alheiras e outros enchidos da região, das carnes como posta, naco, cabrito ou cordeiro de leite. O emblema maior são mesmo os pratos de caça como faisão, perdiz, lebre, veado, coelho, javali ou galinhola, que a cada temporada vão passando pela oferta.

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Cozido de Butelo Nelson Garrido

Desta vez os tordos. Fritinhos, crocantes e estaladiços, com as carnes do peito macias e oleosas das azeitonas picadas. Mas também num soberbo arroz gorduroso com cogumelos, de chupar até as cabeças.

Uma cozinha que resulta da saudável teimosia de Ana Maria e António Desidério, autores e mentores de uma casa que, pelo conceito, estilo e forma de receber, acaba por ser mais que um restaurante exemplar. No seu Solar Bragançano são uma espécie de anfitriões da cidade, os guardiões da tradição e património gastronómico da região.

Como já registou José Luís Peixoto, “aqui estamos no interior de um livro”. Nas palavras do escritor, este Solar Bragançano é um romance transmontano, com enredos da fidalguia, com os seus requintes sóbrios, próximos da tradição, respeitadores das iguarias da terra. Uma obra da autoria de Ana Maria e de António Desidério. Para a ler é preciso ir a Bragança e sentar-se à mesa. E recordar o Entrudo, os cozidos de Carnaval, um excelente pretexto.

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