Fotografia
Isolada de todos, esta aldeia grega vive imersa em lendas e história ancestral
Em isolamento, longe do olhar turístico, a montanha mais alta da ilha de Creta tem plantada uma aldeia "envolta em lendas" e história ancestral. "O isolamento faz com que tenha um nível de preservação de tradições e de modo de vida realmente impressionantes", refere Joan Alvado, autor de The Cave.
No coração da mais alta montanha da ilha de Creta, Psiloritis, está plantada uma aldeia totalmente isolada do exterior. "Quase sem residentes vindos de outras paragens, praticamente sem turismo e de tradições profundamente arraigadas", Anogia e a sua pequena comunidade de cerca de duas mil pessoas vivem "envoltos em lendas" e história que remonta a tempos ancestrais.
Foi neste contexto geográfico que o fotógrafo espanhol desenvolveu, ao longo de três anos, o projecto The Cave, um ensaio visual que propõe uma "viagem que parte de um cenário real" como ponto de partida para a reflexão sobre "a evolução da relação entre o Homem e as suas crenças ao longo de milhões de anos".
Mas que relação existe entre Psiloritis, Anogia, e o fenómeno da fé? De acordo com a mitologia grega, foi na montanha Psiloritis, na ilha de Creta, que Zeus, o deus do universo, nasceu. Reza a lenda que Reia, mãe de Zeus e deusa da maternidade, escondeu o filho no interior de uma caverna, Ideon Antron, para impedir que o pai, Cronus, o deus do tempo, o devorasse. Em tempos ainda mais antigos, que remontam ao período Neolítico, a caverna já era um local de culto. Achados arqueológicos no interior evidenciam que lá já ocorriam vários tipos de rituais de cariz religioso; na Idade do Bronze, por sua vez, a mais alta montanha da ilha de Creta já era uma referência como local de culto da civilização Minóica.
Joan Alvado viajou até à ilha de Creta, na Grécia, para participar numa residência artística, em 2016. "A coordenadora achou que seria um lugar interessante para mim, uma vez que todos os homens daquela região são pastores e eu já tinha realizado, anteriormente, o projecto Escola de Pastores", conta, em entrevista ao P3, o fotógrafo. Ao longo de três anos, realizou várias viagens até Creta. "Ainda durante a minha primeira estadia, criei uma relação com várias pessoas da aldeia; a mais especial foi com a família Stavrakakis, que me acolheu e com quem estabeleci laços muito especiais."
Foi essa família que lhe abriu as portas de Anogia. "Também creio que fechou algumas, porque numa aldeia as cartas estão marcadas", refere, aludindo às naturais rivalidades ou desentendimentos que existem entre membros de uma comunidade. Pôde, assim, partilhar tempo com quem trabalhava na montanha. "Pastores, músicos, jovens, caçadores, sacerdotes", enumera. "Assisti a casamentos, baptizados, velórios, enterros, festivais, festas comunitárias. Poucas coisas ficaram por fazer."
Foi a fraca presença turística na aldeia o que mais chamou a atenção de Joan Alvado. "O isolamento faz com que Anogia tenha um nível de preservação de tradições e de modo de vida realmente impressionantes", comenta. "Por exemplo, os homens ainda usam um lenço negro cretense, que simboliza a derrota nas revoltas contra os turcos em séculos passados e as mulheres ainda fazem o luto por familiares que morreram na Segunda Guerra Mundial. O peso do passado é palpável."
O politeísmo, no entanto, já desapareceu das tradições de Anogia. "A população é cristã ortodoxa. São muito devotos, a um nível extremo conservador, e a liturgia associada à igreja está muito presente em todos os ciclos vitais da aldeia: a Páscoa, os casamentos, baptizados, funerais, romarias, são tradições em que toda a gente participa activamente." Outra particularidade digna de nota, refere, é que "cada família tem uma pequena igreja com o seu nome" e que "estas se encontram disseminadas por toda a montanha". É nessas igrejas que cada família celebra os seus santos, faz os seus baptismos e outros rituais.
A caverna onde Zeus nasceu, Ideon Andron, sempre atraiu o fotógrafo. "Tive, por várias ocasiões, oportunidade de passar manhãs sozinho no interior da caverna", algo que considera um raro e estranho privilégio. "Normalmente, um lugar arqueológico desta magnitude teria o acesso restrito, mas graças à relação de confiança que estabeleci com algumas pessoas da aldeia, consegui acesso e pude passar passar tempo lá, sozinho - uma experiência que me influenciou muito durante o desenvolvimento do projecto."
The Cave marca uma mudança significativa na linguagem fotográfica de Joan. "Pela primeira vez tentei trabalhar sobre uma história que 'não existe', propriamente; ou seja, sobre uma narrativa que provém de uma projecção interior subjectiva. Trata-se de uma narrativa baseada em coisas que não são representáveis fotograficamente. A fé, o passado, o nascimento de um deus não se podem fotografar, não têm representatividade directa."
O seu último projecto, Os Baptismos da Meia-Noite, desenvolvido na região do Alto Minho, já espelha essa mudança de linguagem. "Passei vários anos a familiarizar-me com o acto de fotografar temáticas de forma não literal. Hoje em dia, desenvolver trabalho sobre temas 'não visíveis' é uma pedra angular do meu trabalho."