Ultrajante, revoltante e desumano: o Papa e os cinco milhões

Agradeço ao Papa Francisco, assim como a António Guterres, a vontade de apontarem o foco da humanidade para onde esta mais precisa da nossa atenção.

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Freira do Sudão do Sul, no meio da multidão que espera a chegada do Papa Reuters/THOMAS MUKOYA

Imaginem o que é que não se fazia com cinco ou seis milhões? E quando nem se sabe bem o número ao certo, percebemos a brutal dimensão do problema. Quando os números estão longe de estar exactos, e há uma variação na ordem do milhão, de vidas, o problema é dilacerante. Sim, estamos a falar de vidas, apesar de tudo, penso ser mais importante do que euros. É o conflito mais mortífero desde a Segunda Guerra, dizem as estimativas, e pouco ou nada nos chega ao coração.

Lamento desiludir, mas o palco do qual eu vou falar é o de Kinshasa, e nem sei quanto é que custou, ou se o retorno financeiro será um bom negócio. Sei, sim, que o Papa Francisco sabe como poucos pôr o dedo na ferida, que neste caso é pôr a mão no coração da humanidade. Mas como é de vidas de africanos que estamos a falar, é muito mais importante falar sobre euros investidos em Lisboa, a não ser que se tente compreender e interiorizar algo de muito bizarro, fracturante e disruptivo: todas as vidas são iguais, e têm o mesmo valor.

A República Democrática do Congo até tem algumas ligações históricas com Portugal, algumas que nos ensinam na escola, como o primeiro europeu a entrar pelo rio Congo, e outras que talvez estejam mais escondidas porque nos envergonham. Foi com o reino do Congo que iniciámos um dos maiores negócios da história de Portugal, e aí começa o maior tráfico de seres humanos de sempre. O nome "Zaire" também veio dos portugueses, e da má pronúncia da palavra "Nzere", que quer dizer “rio que engole todos os rios”, em kikongo, um dialecto local.

Normalmente começa-se a contar esta história desde o genocídio do Ruanda, em 1994, que foi das páginas mais tristes da nossa história recente, e que depois transladou, literalmente, para o Leste do Congo e onde se misturou com outros grupos armados congoleses, e o próprio Exército congolês, que também comete crimes hediondos, mesmo sob o olhar de um dos maiores contingentes de capacetes azuis das Nações Unidas.

Estima-se que na guerra do Leste do Congo já terão morrido cerca de cinco a seis milhões de pessoas por consequência do conflito armado. É bem longe da capital onde discursou o Papa, ainda assim, devemos-lhe a coragem, a bondade e a humanidade de ir ao cerne do maior sofrimento humano, sem o qual as vidas destas pessoas ser-nos-iam invisíveis.

Não podemos dizer que não sabemos, nem temos o direito a não querer saber. Nós Portugal e nós Europa também vendemos armas para estes conflitos esquecidos do continente africano. Temos culpa no cartório por alimentar estes conflitos e por desprezarmos estes nossos irmãos. Sabemos também que o Ruanda, que é hoje um país extremamente seguro e civilizado, é um dos Estados que mais lucram com este conflito, com a venda dos “minerais de sangue”, que nós carregamos em todos os nossos telemóveis, chips e computadores.

Trago comigo mil e uma histórias de vidas e de mortes das minhas missões no Congo. Uma vez, fomos chamados ao hospital a meio da noite porque uma criança de dois anos e meio tinha sido atingida no abdómen por uma bala perdida, enquanto dormia na sua cabana. E o que é mais incrível na história deste menino é que já era a segunda bala perdida que lhe atingira o abdómen na sua tão curta e inocente vida, que felizmente não acabou aqui. Fizemos o nosso trabalho: contrariar a maldade, a ignorância e a ganância do homem.

Na sexta-feira, o Papa aterrou no Sudão do Sul. Depois de 30 anos em guerra pela sua independência contra o Sudão, está também em guerra civil desde que “nasceu” em 2011. É um dos países mais pobres do mundo, no topo dos piores rankings de mortalidade infantil, mortalidade materna, fome, não acesso à escola, e do qual nada queremos saber.

Agradeço ao Papa Francisco, assim como a António Guterres, a vontade de apontarem o foco da humanidade para onde esta mais precisa da nossa atenção.

É ultrajante, é revoltante e é desumano que os cinco milhões que mais agarram a nossa atenção sejam os do dito investimento no palco em Lisboa, e não, tal como o Papa deseja, os mais de cinco milhões de vidas perdidas na guerra do Congo.

Cabe-nos a nós escolher se é mais importante olhar para euros ou para vidas. É uma decisão de cada um. Façam a vossa.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteira

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