Até que um Porto Tawny datado ou um Porto Colheita nos chegue ao copo são necessários, no mínimo, sete anos (no caso desta última categoria) de envelhecimento. Quando saltamos para os tawnies com 10, 20, 30, 40 ou 50 anos é fácil de perceber que, tratando-se de categorias que resultam de uma média de idades do vinho final, cada casa terá de possuir vinhos muitos velhos, que são tesouros que permitem o lançamento continuado de tais categorias.
Perante um Porto Tawny 20 anos, um consumidor, regra geral, quer é saber se o vinho sabe bem e lhe dá prazer (é da natureza das coisas). Raramente lhe ocorre que o engarrafamento deste vinho implica uma gestão complexa de stocks de vinhos com 5, 10, 20, 30, 40, 50, 60 ou mais anos (o que interessa é a média final). Nesta matéria, o enólogo chefe deixa de ser o técnico que só cuida das fermentações na vindima e transforma-se num alquimista e fiel depositário do perfil dos vinhos da casa. Sim, porque, apesar do padrão elementar que tem de ser aprovado pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), cada casa tem o seu perfil de Porto Tawny 10, 20, 30, 40, 50 ou mais anos, circunstância que torna este universo ainda mais fascinante.
Ora, como estamos perante vinhos com muita idade e álcool (20 por cento), à medida que o tempo passa ocorre uma evaporação à razão de 2 por cento ao ano, coisa que o espírito romântico da malta das caves de Gaia atribui à sede dos anjos que, pela calada da noite, se divertem a sorver os vapores dos vinhos. É uma sede que sai cara ao produtor e ao consumidor porque, por exemplo, ao fim de 20 anos, uma pipa só terá 54 por cento do volume de vinho inicial. Não é brincadeira.
Do ponto de vista físico-químico, essa evaporação de aromas e álcool tem como consequência a concentração dos açúcares no vinho, com perda de frescura. Na linguagem dos enólogos, os vinhos ficam algo chatos e – com muito tempo – um tanto ou quanto enjoativos ou melados. Mas como são tesouros, o IVDP permite que sejam compensados e/ou refrescados.
Como? Com a adição de outro vinho mais jovem e/ou com a adição de aguardente (e já aqui explicámos que perfil deve ter a aguardente para vinho do Porto), numa quantidade que não pode ultrapassar os dois por cento do volume do vinho que vai ser corrigido. Utiliza-se o termo compensação quando a correcção é feita só com aguardente e refrescamento quando se usa vinho. Por regra, as correcções – que só podem ocorrer uma vez por ano – são feitas com aguardente e com outro vinho. Já agora, em Gaia, estas aguardentes levam o curioso nome de “aguardentes de lotas”, porque estamos perante exercícios de lotação de vinhos.
Se o uso da aguardente para cortar a fermentação já é um processo crítico — pelo perfil do destilado e pelo perfil do vinho pretendido —, a sua selecção para compensação de um Porto com idade também tem os seus melindres, porque se aguardente é fundamental para dar alguma alma ao vinho, jamais poderá mascarar a natureza de aromas e sabores desse mesmo vinho. Uma aguardente mal escolhida pode destruir um vinho.
Após a prova das dez aguardentes para corte de fermentação que fizemos no início de Janeiro nas caves da Poças, André Pimentel Barbosa, director de enologia da empresa, colocou à nossa frente três copos. O primeiro tinha um Tawny 10 anos que o enólogo entendia necessitar de alguma correcção; o segundo tinha este mesmo vinho base com a adição de dois por cento de uma determinada aguardente e o terceiro copo tinha o mesmo vinho base, mas com uma aguardente com outro perfil. Objectivo do exercício: apontar qual dos copos (o segundo ou o terceiro) apresentava o vinho mais equilibrado no aroma e no sabor. E lá dissemos – é plausível que André Barbosa nos tenha facilitado a vida com a escolha de uma aguardente excessiva para o copo 3 – que o copo 2 era o vinho mais interessante. De facto, o enólogo da Poças tinha adicionado ao copo 3 uma aguardente que ele próprio tinha recusado nas suas provas de selecção, visto que “tornava o vinho muito pesado e escondia a fruta do vinho”.
E voltamos ao espírito do texto inicial: quando o vinho base — neste caso um Tawny já com idade — é de qualidade, a aguardente deve ser o mais neutra e constante possível, por forma a respeitar os aromas e sabores terciários e naturais que o vinho foi desenvolvendo com o tempo. Se for aromática tornará o Tawny algo artificial; se for pesada vai tornar o vinho chato.
No mundo do Porto costuma dizer-se que o Vintage é a obra da natureza (porque depende do ano climático), enquanto o Tawny é a obra do homem, no sentido em que exige um domínio técnico do enólogo e de outros técnicos de cada casa. É uma bela imagem. Nós, consumidores, quando bebemos um Porto, deveríamos erguer sempre o copo para saudar a arte de lotar vinhos com diferentes idades. Porque é mesmo uma arte. E portuguesa.